31.7.06

Você tem fome de que?

Doutor,

os grilos tritrilam, o que é estranho, pois estou no escritório. Devem ser ecos do ranger de meus neurônios semi-atrofiados tentando se comunicar, apesar da comparação ser exagerada. Nada disso, aliás, vem ao caso, são apenas delírios de uma cabeça insone.

Não. Minto. Estou com sono, é isso. Só que não quero dormir. Quero aproveitar esse torpor para criar algo que preste. Mentira. Desculpe, imaginei que neste ponto de nosso relacionamento eu já conseguisse ser sincero com mais freqüência, mas sou um mentiroso patológico e incurável. O senhor me conhece, então não vou dourar a pílula. Aliás, chega de pílulas. Chega de remédios e de concatenar idéias desconexas. É o sono. São as pílulas. Sou eu. Ponto. Próxima linha. Travessão.

Sei que desapareci. Não, não vou explicar. Porque não quero, porra! Porque quero que se foda todo e qualquer tipo de explicação. Cansei de me explicar. Cansei de procurar sentido em qualquer porra que me aparece na frente.

Sabe quando você senta num bar e descobre que tem alguém olhando para você? Sabe aquele exato momento em que sua cabeça se enche de possibilidades, de alternativas, de dúvidas por vezes irrespondíveis, a não ser que você tome alguma atitude que desencadeie a avalanche iminente? Pois então. Minha reação a isso é a simples estagnação. Não se mexe que a coisa não desaba na tua cabeça. Chafurdo na lama de minha insegurança, aderno em minha autocomiseração. E perco a foda. Morro de fome ao invés de soterrado. Pensar demais atrapalha.

Hoje quero mais é ficar à deriva. Deixar que as correntes me carreguem ao invés de me prenderem. Poético, não? Pois é, saiu sem pensar. Estou numa fase metafórica. Não ligue para isso.

Claro que eu tenho problemas! Claro que eles vão bater na minha porta como uma horda de Testemunhas de Jeová numa manhã de domingo. Mas e daí? Quando chegarem me encontrarão de pau duro. Receberão uma reação espontânea ao invés de uma cara de tacho. E esta reação pode variar de um beijo a uma carnificina. Viva a Loteria. Blim-blom.

A geladeira está quase vazia. Tem um pote de margarina sintetizando penicilina e um yakult vencido cheio de lactobacilos mortos. Minha úlcera geme, faminta. Aquilo não serve. A cabeça do meu pau está dolorida. Meus olhos ardem, minhas costas estalam num arpejo de um piano desafinado. Escrevo.

Escrevo.

Escrevo, e o que sai é um reflexo de meu egoísmo.

Olha pra mim.

Olha.