24.11.06

A minha Morte

Doutor,

nós sabíamos que um dia chegaria a este ponto, não sabíamos?

Eu estava lá, mirando os vidros de remédio vazios em cima da mesa, o copo com uísque barato derretendo gelo, a garrafa com apenas um fundo de bebida. Já sentia a ponta dos dedos dormentes. Uma sensação boa. Uma sensação libertadora. Não havia arrependimento, não havia tristeza. O silêncio arpejava em meu corpo suas escalas mudas, e eu começava a fazer parte daquela sinfonia. Dissolvia-me no éter, sublimava na irrealidade. Acho que sorria. Daí ela entrou.

Tinha certeza que tinha trancado a porta, mas vendo-a puxando uma cadeira e sentando no outro extremo da mesa já não tinha mais tanta certeza. Não tinha ouvido a porta abrir. Ela jogou os cabelos negros e alisados para trás dos ombros, deixando apenas a franja indolente invadir seu rosto. Olhos grandes e maquiados, rosto oval e boca carnuda. Belos peitos de silicone, cinturinha lipoesculturada, bunda arredondada no tapa, coxas fortes. Adivinha quem acordou?

- Quem é você? - perguntei, segurando a baba que escorria da boca.

- Você sabe.

- Querida, eu nem sei mais quem eu sou.

- Sou a sua Morte.

Não consegui conter uma risada fungada.

- O que foi? - perguntou ela, franzindo as sobrancelhas neuroticamente pinçadas.

- Dá pra ser mais clichê? Eu, no final, delirium tremens, antropomorfizo a Morte como a Juliana Paes!

- É quem eu sou?

- Não, você é a Morte.

- Não sou, não.

- Mas você disse...

- Eu disse que sou a SUA Morte. Não sou A Morte.

- Putz, nem a oficial eu atraio. O que é você, uma estagiária?

Ela me olhou e sorriu. Minha calça estava ficando apertada.

- O que você quer? - perguntei, tentando alcançar o copo. Mas meu braço não me obedeceu. O copo dançou quando encostei os dedos inertes nele, mas não saiu da mesa.

- Nada. Eu só cheguei.

- Brega, brega. Gostosa, mas brega. E clichê – tombei o corpo e tentei focalizar o cérebro o suficiente para levar o copo até a boca. Consegui, mas me babei todo. - Aliás, eu já li esse livro.

- Eu sei.

- E não gostei do final.

- É por isso que estou assim?

- Você pergunta?

- Sou gostosa?

- Querida, só não empacotei até agora porque você acionou canais sangüíneos que já deveriam ter sido esquecidos.

- Você quer dizer, seu pau?

- Não faz isso...

- Desculpe.

- A Morte não se desculpa com ninguém.

- Não sou A Mor...

- Tá, tá, saquei.

Consegui beber mais um gole. Ela se levantou e deu a volta na mesa. Pegou a garrafa e encheu meu copo.

- É isso?

- É, acho que sim.

- É só isso? Você não vai falar nada? Não vai me passar um sermão? Um video com minha vida medíocre? Uma lição de esperança? Um passaporte para o Vale dos Suicidas?

- Não.

- E cadê a porra do túnel?

- Você quer um túnel?

- Não. Eu queria ver seus peitos.

Ela baixou o decote. Meus olhos quase saltaram das órbitas.

- Isso te fez feliz?

- Querida, se eu fosse imaginar a minha Morte, seria exatamente assim.

- Eu sei.

Ela não subiu o decote. Encostou aquele bundão na mesa e ficou me olhando.

- Você vai me levar?

- Para onde você quer ir?

- Não sei...

- Então não.

- E o que você veio fazer aqui?

- Para um suicida, você faz muitas perguntas.

- E isso não é o que é um suicida? Um cara cheio de perguntas sem resposta?

- Não. É um cara que achou uma única resposta para todas as perguntas.

- Preciso dar uma mijada.

- Quer ajuda?

- Não faz isso...

Consegui cambalear até o banheiro e fazer um lançamento oblíquo de urina.

- Posso perguntar por que?

- Se minha própria Morte não sabe, quem sou eu para saber?

- Sei lá. Achei que tinha algum motivo.

- Às vezes a ausência de motivos é motivo o suficiente.

- Que bonito.

- Obrigado.

Voltei ao meu lugar. Ela continuava lá, sentada na mesa com os peitos pra fora.

- Cobre essas coisas.

- Não gosta mais?

- Ah, cala essa boca!

Óbvio que ela obedeceu.

- O lance é que eu te chamei, mas não quero mais. Você é uma Morte gostosa e eu não quero isso. Não mereço uma Morte gostosa. Você deveria vir aqui feia, acabada, entrevada e cheia de verrugas. Vazando pus pela boceta. Aí eu te abraçaria. Desse jeito não dá.

- E o que você vai fazer então?

- Isso.

Saquei o revólver e dei dois tiros naqueles peitos. Ela levou os golpes e caiu da mesa. Cambaleou um pouco e me olhou. Sangue encharcava sua camisa e escorria por seu queixo. Tinha medo nos olhos. Engatilhei o revólver como fazem no cinema. Ela sorriu quando viu o cano apontado para sua cabeça.

- Você sabe que isso não vai adiantar nada. Eu volto.

- Eu espero que sim.

Blam! Espalhei seus miolos no assoalho. Caí sentado do lado do corpo. A minha Morte estrebuchava. Eu tinha matado a minha Morte.

O som dos tiros alertou os vizinhos. Miraculosamente uma ambulância chegou a tempo de me fazer uma lavagem estomacal. Seis horas numa enfermaria e aqui estou de volta, tendo como únicas testemunhas os três buracos de bala, dois na parede, um no chão.

Tenho uma nova receita para o senhor, Doutor. Mais uma mancha na prancha Rorschach de meu cérebro. Mais uma tarja preta em meu prontuário.

Mais um atestado da sua incompetência.

6.11.06

Pau de Fogo

Doutor,

comprei uma arma.

Nem sei porque. Simplesmente comprei. Descobri que iria conseguir fechar as contas do mês com alguma folga, e como isso não acontecia há algum tempo decidi gastar este resto de grana em algo que me satisfizesse de alguma maneira. Eu estava caminhando pela rua quando fui abordado. Psiu, quer comprar um revólver? Como é? Chega aí. Olha. Três oito, número de série raspado. Você tá querendo me empurrar uma gelada? Como vou saber que você não matou alguém com essa arma? Meu, pelo preço que estou fazendo não dou direito a perguntas e nem garanto respostas. Gostei da argumentação e fechei o negócio. Cheguei em casa com um trezoitão em um bolso da jaqueta e uma caixa de munição de brinde na outra.

Não, eu não sei realmente o que me levou a comprar aquela arma. Do jeito que foi pareceu que ela me foi vendida pelo demônio em pessoa. O doutor bem sabe que eu não acredito nessa coisas, mas que pareceu coisa de intervenção demoníaca, isso pareceu.

A princípio eu não tirei a arma do bolso. Deixei-a lá, pesando minha jaqueta. Tirei a caixa de balas e coloquei sobre a mesa. Abri, e vi a pequena plantação de cabeças de chumbo enfileiradas. Tirei uma cápsula e olhei bem. Me deu vontade de abrir, de dissecar aquela pequena maravilha da tecnologia. Uma coisa tão simples, tão básica, mas tão bonita, tão letal. Reprimi o impulso, pois não sabia como fazer e podia dar alguma merda. Melhor não arriscar.

Meu pai tinha um revólver. Era pequeno, prateado e quase nunca saía do estojo. Calibre .22. Arma de moça. Deixava-a ao alcance, na gaveta do criado mudo do seu lado da cama. Mantinha a munição escondida em local desconhecido, se é que havia alguma. Tinha muita criança em casa. Um dia entrei no quarto dele com meu primo e fomos vê-la. Claro que ele nos flagrou na hora. Mas não brigou com a gente, não. Fez muito pior. Sentou do nosso lado e pediu para segurar a pistola. Pegou-a com certa reverência, com a ponta dos dedos. Mostrou com este gesto que respeitava a arma, mesmo sendo adulto, e que deveríamos fazer o mesmo. Ficamos quietos vendo-o verificar se estava descarregada. Daí ele girou o tambor e fechou-o com um estalo metálico que retiniu em nossas almas. Então deu-a para mim. Pega, disse, não tem problema. Peguei igual a ele, com a ponta dos dedos. Agora mira na cabeça do teu primo. Ambos arregalamos os olhos. Vai, não tem perigo. Quero te mostrar uma coisa. Obedeci, mas tremendo. Meu primo quase se borrou todo quando o cano gelado encostou em sua testa. Abre os olhos, Rique. Se este for o seu último momento de vida, encare-o de olhos abertos. Uma lágrima escorreu pela face de meu primo. Várias pela minha. Queria implorar para que ele parasse com aquilo. Tinha perdido a graça, mesmo sabendo que a arma estava descarregada. Daí ele falou, com uma voz calma. Sabe que é pior levar um tiro de .22 do que de qualquer outra arma? Principalmente na cabeça. O cartucho tem pouca pólvora, e a bala não tem muita força. Num tiro assim, à queima-roupa, a bala só tem força para passar pelo osso do crânio uma única vez. Ela vara a testa e fica quicando dentro da tua cabeça, dissolvendo seu cérebro, tuas lembranças aos poucos. Não é o impacto da bala que te derruba, mas tuas pernas dobram quando a parte do teu cérebro que coordena as funções motoras vira geléia. É uma morte limpa, quase sem sujeira. É uma morte profissional. Não respondemos. Ele pegou de novo a arma de minha mão e nos enxotou do quarto. Nem preciso dizer que nunca mais brincamos com ela.

E agora eu estava lá, com um revólver no bolso. Não era para uma morte limpa. Um tiro à queima-roupa na testa transformaria a parede atrás do alvo em uma pintura abstrata de sangue, ossos e miolos. Coisa feia. Uma morte amadora, barulhenta e asquerosa.

Fui até o armário da cozinha e guardei a caixa de balas ironicamente perto do lugar onde guardo meus doces. Daí peguei na gaveta um saco plástico com fecho de vedação para freezer e rapidamente coloquei o revólver dentro. Fechei o saco ainda tremendo. Peguei então um rolo de fita adesiva e fui até o banheiro. Abri a tampa do reservatório de água da descarga e colei o saco na parede interna. Precisei dar duas descargas para conseguir, e ficou bem ruim. Mas fechei a tampa e tentei esquecer da arma.

Eu até consegui. Mas não consegui evitar de sonhar com um cérebro sendo triturado por uma bala ricocheteante. Lembra de... Quando... Daquela vez que... E uma a uma as memórias desapareciam.

Só uma lembrança ficou quando finalmente acordei: que ainda tinha uma conta pra pagar e que eu não tinha mais um puto para isso.

Nunca senti tanta vontade de dar um tiro na minha testa.