28.12.07

O Cúmulo da Ironia

Doutor,

eu, no caixa do banco, saco o talão de cheques e ouço:

- Desculpe. Não aceitamos cheques.

- Não? - perguntei, em minha infinita inocência. - Por que não?

- Se banco aceitasse cheque ia à falência!

Se nem caixa de banco confia em cheque, por que raios essas merdas são emitidas?!?

Depois reclamam quando são assaltados com armas de brinquedo...

10.12.07

Um raso sacrifício

- Bom?

Bom? Mais que bom. Perfeito. Mais que perfeito!

- Perfeito demais pra ser realidade?

O que ele quer dizer com isso? Nada é perfeito demais pra ser realidade depois de se tornar realidade. Por mais irreal e idealizado que algo possa ser, depois de realizado é algo alcançável. É passado. História. Realidade.

- Nem sempre. A realidade é subjetiva.

Isso quer dizer que ele não achou tão bom? Que ele está com dúvidas?

- Eu não. Você que está. Eu já estou decidido.

Por que é sempre assim? Por que sempre me envolvo com os malucos? Por que não posso ter uma vida normal como qualquer outra?

- Porque você é bidimensional. Restrita. Limitada. É uma criaturinha medíocre e fadada a um destino prosaico e sem grandes conseqüências para a humanidade. Você é simplesmente uma bolha no oceano. Um nada cheio de nada. E sabe disso.

Sei? Não sei mais nada. Que papo é esse, meu Deus? Estava tudo tão perfeito, tão idílico, tão ideal! Depois de tanto procurar, quebrar a cara, me decepcionar, eu finalmente encontro o homem perfeito. E agora, depois de tudo o que passamos juntos, ele vem com esse papo. É demais pra minha cabeça. É demais pra mim. Não agüento mais. Acho que vou explodir!

- Quer suas pílulas?

Quero. Dá aqui esse frasco. Vou tomar todas. Na sua frente. Vou morrer de uma forma grotesca para que você não possa mais me machucar assim. Nem a mim nem a nenhuma outra. Quem você pensa que é pra falar assim com uma mulher? Uma mulher como eu! Que absurdo.

- Desce melhor com uísque. Toma.

Dá aqui essa porra! Você vai ver, seu puto. Vou estrebuchar e vomitar em cima de você. Vou morrer em seus braços de uma maneira que você nunca vai esquecer. Ah, se vou. E eu achando que tinha encontrado o homem perfeito, aquele que finalmente abriria meu coração e com quem eu passaria o resto da minha vida.

- E estou realizando seu desejo.

Está? Está. Não, não posso terminar assim. Não posso morrer agora. Preciso vomitar. Me leva prum hospital. Isso não pode estar acontecendo. Parece um roteiro de filme ruim. Não tem sentido. Você é um personagem de um filme ruim?

- Não, eu não sou.

Ufa!

- Você é quem é.

Levanta a cabeça. Abre os olhos. Como é? Como é? Você está louco? Louco, louco, eu só conheço loucos. Será que a louca sou eu?

- Não. Não é louca. Só é pouco desenvolvida. Uma personagem ruim, só isso. Não quero criar nada para você. Não quero usar você. Estou descartando-a. Apagando sua participação ridícula em minha trama. Você não presta nem como alívio cômico. E nada do que eu possa fazer pode melhorá-la. Nada. Como eu disse, bidimensional, fútil, esquecível. Está me ouvindo ainda?

Na... Estou. Isso não pode ser verdade. Não, não. Eu sou interessante. Mereço pelo menos uma ponta na sua trama. Escreva sobre mim? Por favor? Qualquer coisa. Qualquer uma...

- Eu acabei de fazê-lo.


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Doutor,

será que isso pode ser contabilizado como uma vítima?

5.12.07

Antiplatonismo aplicado

Doutor,

ela podia ser feia. Podia ser gorda demais, daquelas boas para destrinchar na faca. Ou magra demais, para que eu passasse alguns dias só mascando seu tutano. Deformada, para que eu aloprasse psicologicamente sua já destruída auto-estima. Vesga. Caolha. Com protuberâncias ou pelos em lugares estranhos. Verruguenta. De cabelos ruins e buço gritante. Bochechuda, para levar uns bons tabefes. Corcunda. Manca, para que eu me divertisse ao vê-la se desequilibrando numa patética tentativa de fuga. Podia. Claro que podia.

Ela podia ser burra. Totalmente ignorante. Uma besta quadrada até para os padrões mais permeáveis. Cheia de preconceitos, achismos e teorias surrupiadas de canais abertos de televisão. Uma autêntica anta, que não conseguiria conversar dois minutos sem soltar uma gafe histórica. Podia falar 'menas', 'a nivel de' e extrapolar todos os limites do gerundismo. Podia só ler revistas de fofoca e Paulo Coelho. Podia achar que se cortasse o cabelo na lua cheia um santo qualquer iria tirá-la do atoleiro.

Ela podia gastar todas as economias em cartomantes e videntes. Podia ser evangélica, adventista, católica ou qualquer outra merda dessas. Ela podia acreditar em duendes, fadas, elfos, morlocks ou em espíritos reencarnados de guerreiros da Lemúria. Pode ter chorado assistindo "Quem somos nós?" ou tido várias idéias cretinas com "O Segredo". Podia ter uma amiga macumbeira e ser viciada em fazer simpatias esdrúxulas. Podia ter medo de ter idéias próprias. Podia ser domesticada. Podia ser uma total ameba.

Podia sonhar em casar e em constituir família. Podia achar que o máximo de sucesso seria se ela fosse mãe de um casal de moleques ranhentos e estúpidos. Que ter um marido gordo, mal-humorado e que não sai de dentro do puteiro é bom, pois ele traz dinheiro pra casa. Podia achar que chorar sozinha na cama de madrugada era um preço barato pela felicidade. Que masturbação era uma aberração do demônio. Que drogas são o mal da sociedade. Que o máximo de arte que ela tem acesso é novela. Que ela sofre nessa vida mas terá uma muito melhor depois de morrer.

Além de tudo isso ela podia ser uma pessoa boazinha. Querida por todos. Uma autêntica flor, que nunca na vida soltou um único palavrão. Podia ser delicada, cheia de pudores e frescuras. Podia só fazer amor com as luzes apagadas. De babydoll. E só em ocasiões especiais, pois sexo por prazer é pecado. Podia lavar a boceta com água benta enquanto o maridão ronca alto no quarto. Podia fazer gargarejo e usar Vagisil. Podia fazer parte de um grupo de senhoras de bairro. Podia ajudar em obras assistenciais. Podia ser canonizada em vida. Podia envelhecer mal. Ficar varizenta. Caída. Assustadora. Mas adorável. Podia ser mais uma velhinha horrenda e adorável da sociedade.

Podia ter esqueletos no armário. Taras particulares nunca extravasadas. Traumas idiotas. Sonhos desfeitos por inação. Podia ter uma paixão não correspondida na juventude. Podia ter vontade de se matar de vez em quando. Ou de matar outros. Podia ir se confessar depois. Podia se sentir bem com isso. Satisfeita.

Podia tanta coisa.

Podia.

Só tem uma coisa que ela não podia ser.

Ela não podia ser ela.

E nem eu tão covarde.

4.12.07

O sentido de uma fuga sem sentido

Doutor,

ando fugindo. Fugindo de tudo. Fugindo de mim. Tudo é desculpa para fugir. E a fuga é a única desculpa que tenho. Fujo, corro, me escondo, desapareço. Nem sombra sou, pois sombra é na verdade a imagem de algo. Não sou nada. Não faço nada. Não existo.

E fujo dessa inexistência também.

São comichões, doutor. Sintomas esparsos entre as fugas. Momentos de lucidez depressiva. Julgo tudo o que faço. E só faço merda. Afogo-me em litros de álcool e quantidades abusivas de drogas. Não vejo mais sentido. Não encontro mais sentimento.

Já não me apaixono mais.

Não, não sinto falta de alguém em minha vida. Não. Seres humanos não me convém. Tampouco animais. Muito menos você, que ora lê essas linhas e já pensa no comentário que fará a seguir. Não me interessa. Pense a mediocridade que quiser. Pouco me importa se você ou toda a humanidade de repente desaparecer num último suspiro ignóbil. Foda-se. Fodam-se.

Por alguma razão um pensamento se repete. Uma idéia sem nexo, sem motivo, cisma em ressurgir nessas sinapses caóticas. Imagino-me enfiando lascas de madeira embaixo de minhas unhas. Vejo-me enfiando-as bem fundo, até a raiz. O sangue escorrendo, a unha se desprendendo da carne juntamente com as lágrimas em meus olhos. Tento imaginar a dor mas não consigo. Outro dia enfiei a ponta da faca de meu canivete sob a unha de meu polegar esquerdo. Doeu, mas foi como uma dor de dente de leite mole. Uma dor punctual. Medíocre. Mas não tive coragem de continuar. Nem sei por que. Parei, simplesmente, como sempre. Não fazia sentido. A dor permaneceu e depois aumentou o suficiente para que eu novamente fugisse. Uma dose exagerada de analgésicos me anestesiaram na dose certa para que o tormento permanecesse. E a dor não trouxe nenhuma realidade. Trouxe apenas mais um caminho de fuga. E eu, covarde que sou, rapidamente o acolhi. Entre sorrisos bestas e idéias desconexas. Inação e inanição.

Niilista que sou, parei de buscar sentido nas coisas. Mas esta falta de sentido torna a vida um quadro branco. Não há estímulos, não há reações. O que todos fazem não importa. O que faço não interessa. Nada, nada, simplesmente nada. A tinta teima em secar na ponta da caneta, forçando-me a lambê-la. A mancha em minha língua é a única impressão que existe, o único traço da realidade. E mesmo assim é efêmera. Engulo-a rapidamente. Fagocito-a. E o quadro permanece em branco. Nulo. Inexistente. Desnecessário. Inominável.

Tal como eu.

E você.