26.2.08

Estaca Zero

Doutor,

Lá estava eu novamente, remoendo idéias lubrificadas com álcool vagabundo, sentando a bunda num tamborete dum balcão de um bar qualquer. O copo, o guardanapo, o maço amassado, o isqueiro com pouco fluido, os olhos fixos, o cérebro a mil. Quando, para variar, alguém senta-se do meu lado.

- Problemas, amigo?

Normalmente apenas resmungo em resposta. Mas desta vez olhei para ver que figura meu Ímã de Malucos havia atraído. Um garoto. Imberbe. No máximo dezoito anos (o que deduzi apenas por estar bebendo um chope e não uma coca). Olhos claros. Cabelos impecavelmente longos. Camiseta branca. Pegou meu isqueiro sem pedir e acendeu um cigarro. Cravo.

- Não é da tua conta.

- Claro que não - riu ele, soprando fumaça enjoativa em minha direção. - Nunca é da conta de ninguém. Todos somos ilhas flutuando num oceano de indiferença. Não é?

- Eu mereço...

- Mas seus problemas eu sei quais são. Você está cansado de ser bonzinho. De ser o último idiota da Terra. Cansou de ser passado para trás. Estou errado?

Agora ele tinha conseguido minha atenção. Mas não o suficiente para que eu desse alguma trela. Isso não o impediu de continuar.

- A verdade é que você descobriu a duras penas que ser bom, ser correto só lhe traz problemas. Só lhe traz complicações. Não é isso?

- E quem te disse que eu sou bom?

- Eu sei.

- Sabe como?

- Eu sei tudo.

Pronto, agora quem sabia era eu. Mais um megalomaníaco pra minha coleção.

- Sabe tudo? Você é um tipo de deus?

- Não.

Ufa!

- Sou o filho Dele.

Minha cabeça desabou e quicou duas vezes no balcão. Resmunguei algo como "putaqueopariuporquesempretemumaMERDAdefilhodaputaseachandoJesusnomeucaminho?". Ele riu. Levantei a cabeça.

- E o que o filho do cara está fazendo num boteco fedorento...

- Ei!

- Foi mal, Zé. Traz outra, por favor? Continuando, o que o Jesus reencarnado está fazendo aqui, conversando com um merda como eu? Não tem uma humanidade inteira lá fora para você salvar?

- A humanidade está além de qualquer salvação. Não retornei para salvar a humanidade. Retornei para salvar o homem. Os homens como você. Não sou o cordeiro. Sou o lobo da evolução. Sou a mão esquerda. Aquela que destruirá, e não a que afagará.

- Bom trabalho. Espero que tenha sucesso.

- Terei. Pode acreditar.

- Perdoe minha falta de fé.

Ele tomou mais um gole do chope e tragou novamente o cigarro. Tossiu, com certeza pouco habituado aos vícios mundanos. Um Jesus moleque. Não sei por que mas fui com sua cara.

- Tá, Jesus. Me conta uma parábola então. Algo que me faça pensar a respeito de perguntas que nunca fiz e que não me interessam.

- Não tenho parábolas. Não sou o mensageiro, sou a mensagem. Não trago iluminação, trago epifania.

- Vai ter que fazer melhor que isso pra me convencer, pirralho.

- Não preciso te convencer. Você já é um convertido. Você é minha ferramenta. Através de você espalharemos a nova palavra no meio da perdição.

Refleti a respeito disso um instante, enquanto Zé colocava uma dose em minha frente e levava o copo vazio embora.

- Quer que eu seja seu apóstolo?

- Isso.

Um apóstolo de um messias da destruição da humanidade? Não era uma idéia tão ruim assim. Eu realmente havia chegado a uma conclusão que não adiantava nada ser bonzinho. Bonzinho só se fode. Bonzinho paga o preço dos cruéis. De repente era hora de mudar de estratégia. Espalhar o caos, a destruição, o ódio. Uma eugenia forçada. O mundo seria meu labirinto e os humanos meus ratos. Gostei da idéia. Ia responder isso a ele, mas vendo-o fumar com tanto prazer seu cigarrinho de cravo fiquei com vontade de fumar também. Puxei o maço, tirei um cigarro todo torto de dentro e resgatei o isqueiro. Clique, clique, nada. Só faísca. Sacudi-o. Clique, clique, clique. Porra nenhuma. O Zé não estava à vista. No bar apenas eu e Jesus. E ele tinha usado meu isqueiro pra acender o seu cigarro. Estava lá, me observando com cara de chapado. Nem para oferecer uma brasa. Tinha alguma coisa errada. Muito errada. Quando me vi estava amassando meu cigarro na mão. O cheiro de tabaco não-incinerado misturado à sua fumaça de cravo me embrulhou o estômago.

- Uma parábola - pedi a Jesus. - Apenas uma. Acho que mereço, se você pretende que eu seja seu apóstolo.

- Não sou o deus das parábolas. Não mais. Agora sou o deus dos eufemismos...

Nem esperei-o terminar. Chutei o pé se sua banqueta para trás. Ele caiu para frente, o rosto atingindo em cheio o balcão. O banco rolou para longe. Ele, para perto. De mim. Agarrei seus cabelos e o ergui. Foi uma pancada feia. O lado esquerdo de seu rosto estava inchado e com certeza ficaria roxo. O lábio sangrava. Olhava-me apavorado, com aqueles olhos azuis irritantes. Tremia.

- Levanta! - berrei. - Levanta, seu merda!

- O que foi que eu fiz?!

Lágrimas.

- Nada. Esse é o problema. Não fez porra nenhuma. Não fez o que eu queria.

- E o que é que você queria?

- Agora não interessa mais o que eu queria. Interessa o que eu quero.

- E o que você quer?

- A outra face.

Esmurrei-o do lado direito. Ele caiu para trás, a cabeça quicando no piso como uma bola de boliche. Gemeu. Em meus dedos haviam tufos de seu cabelo agora não mais impecável. E seu sangue nos nós de minha mão direita.

- Messias é o meu caralho - rosnei em sua direção. Ele tentou rastejar para longe de mim. Escorregou. Não ia longe.

- Deixa ele! - gritou Zé às minhas costas. Parei, sem olhar para trás. Sabia que com certeza ele estava me apontando a medíocre vinte e dois que sempre deixava muquiada embaixo do balcão para emergências. Avaliei a situação por um instante. Não valia a pena. Sem me virar saquei a carteira, tirei uma nota e joguei-a no chão. Jesus continuava lá, sangrando e gemendo ridiculamente. Passei por ele sorrindo. Duvido que ele fosse esquecer de mim tão cedo.

- Escreve isso no teu evangelho, moleque - disse, o mais cheio de escárnio que consegui. Ele não respondeu. Apenas sorriu de volta. Um sorriso assustador. Um sorriso de cumplicidade. Me pegou de surpresa. Sem saber mais como lidar com aquilo saí do bar. Já na rua atirei seus cabelos na sarjeta e fui pra casa. Demorei a dormir.

É isso aí, doutor. De volta à estaca zero.

14.2.08

Sobre Amizades e Mulheres

Doutor,

permita-me citar outro doutor aqui, o cachorrão Dr. Love:

Caro FDP, amizade entre homem e mulher é uma brincadeira de fósforos. Hora se acende, hora se apaga.
A verdade é que a gente nunca segue a máxima de sua tia, avó, mãe, ou vizinha-varizenta-mal-amanda e sempre acaba brincando com fogo, mesmo sob a perspectiva nada lisonjeira de se mijar todo na cama de noite.

Brinca e se queima.

E a queimadura dói pra cacete.

Porque se tem coisa pior que perder uma pessoa por quem se tem sentimentos é perder uma amiga.

Mas não tem jeito. Como continuar sendo amigo de uma pessoa que você já se envolveu emocionalmente? Ou que continua envolvido? Como evitar um surto psicótico destrutivo se por acaso você testemunhar sua amiga se agarrando a outro cara numa balada? Como evitar os murros no espelho do banheiro, as falanges esfaceladas com os cacos, o prejuízo na conta, o vexame de ser arrastado pra fora do bar por um segurança três vezes maior que você?

Eu não sei.

Mas que me deu uma vontade imensa de quebrar alguma coisa agora, isso deu.

Me encontre amanhã nas páginas policiais, doutor.