24.5.08

Catarse numa hora destas?

Doutor,

quando o barato termina, o cigarro se apaga e o uísque seca no fundo do copo a gente saca.

Simplesmente saca.

Saca que somos descartáveis. Que somos um acúmulo casual de células fadadas à dissociação. À reassociação. À dissolução.

Sem solução.

O bêbado uma vez disse: If you're gonna to try, try all the way. Otherwise not even start it.

Graças a ele aprendi inglês, olha só.

Bela merda.

Somos todos merdas belas.

Acúmulos fecais fortuitos autômatos.

Merdas ambulantes.

Com licença, vou dar uma volta.

8.5.08

Um tanto súbita, mas não morte

Doutor,

eu não sabia como havia acabado lá, mas o certo é que abri os olhos e vi apenas o breu. Pés juntos em sapatos apertados. Alfinetes espetavam minhas costas através do tecido vagabundo do paletó idem. Eu navegava em pétalas fedorentas de rosas brancas. Assoei o algodão das narinas e gritei, o ar já rarefazendo em meu esquife. Enterrado vivo. Era só o que me faltava. Livrei as mãos e esmurrei a tampa acetinada. Berrei uma, duas vezes, sem resposta. Silêncio absoluto. Morte inevitável.

Como eu havia parado ali? Que médico imbecil consegue cometer uma gafe dessas em pleno século XXI? Forcei meu cérebro tentando recordar o que poderia ter acontecido. Nada. Nem uma pista mínima. Fui dormir e acordei aqui. Simples assim. Teria sido eu vítima do crime perfeito? Cheguei a ficar envaidecido. Quem em sã consciência perderia tempo planejando minha morte de maneira tão eficaz, tão limpa? Quem eu poderia ter provocado a ponto de querer minha morte? Parei de listar os nomes quando passaram de vinte. Sim, doutor, você estava na lista.

Por um instante minha face se contorceu num choro desesperado. Eu ia morrer! E da pior maneira possível! Sufocando lentamente em uma caixa de madeira lacrada e fedendo a rosas. Numa roupa ridícula. Sem chances de me vingar ou mesmo de arrastar meu assassino comigo. De fazê-lo provar um pouco de seu próprio veneno. De vê-lo dar seu último suspiro segundos antes do meu. Fui privado da única satisfação que eu poderia tirar de minha morte: minha vingança!

Eu não podia me render assim! Não, eu não tenho uma vida que mereça ser poupada, é claro. Sou uma seqüência de desperdícios desde o momento que nasci. Desperdícios próprios e alheios. Realmente quem fez o que fez deve ter algum motivo. Não o julgo. Mas, como bom egoísta, quero mais que estas racionalizações se fodam. Eu precisava sair dali. Esperneei e gritei o máximo que deu. Não movi a tampa nem um milímetro sequer. Desespero pela inevitabilidade. Tantas vezes pensei ter chegado a este ponto, mas nada se compara ao que senti naquele momento. Gritei até a voz acabar. Rasguei o forro de cetim da tampa e mastiguei pétalas até ficar exausto. Depressão. Ninguém me ouviria. Era o meu fim. Acabou. Morri.

Fodeu.

Foi em meu silêncio mórbido que ouvi as primeiras batidas do cinzel no lacre de concreto. Alguém tinha me ouvido. Tentei continuar gritando, mas quase morri engasgado pelas pétalas. Tossi tanto que, durante as convulsões, bati a cabeça na tampa do caixão algumas vezes. Dane-se. As cinzeladas continuavam, cada vez mais fortes. As lágrimas que escorriam agora eram de alívio. Será que havia ar suficiente em meu esquife para que meu salvador chegasse? Tentei relaxar. "Se eu sair daqui prometo que tudo será diferente", pensei. Eu mudaria. Seria uma pessoa melhor. Alguém respeitável. Alguém que faria a vida valer a pena. Chega de desperdício.

De repente meu mundo inteiro tremeu. O caixão era erguido. Quase lá, quase. Senti a pancada quando fui jogado ao chão. Um parafuso. Outro. Mais um. Pode respirar à vontade agora. Tem ar suficiente. Mais outro. E outro. Quantos parafusos tem essa porra de caixão, caralho?!

A tampa então é aberta e a chuva cai torrencialmente em meu rosto, lavando as lágrimas. Parado ao lado do caixão uma criatura disforme pela precipitação e ofuscação. Um cigarro em sua boca continua aceso mesmo sob a chuva. Será?

- Quem é você? - perguntei antes mesmo de agradecer. Ele não respondeu. Apenas bateu de leve com o indicador em sua têmpora.

Que merda era aquela? Era ele que tinha me colocado lá? Levantei, espalhando flores pelo chão molhado. A roupa apertada limitava meus movimentos, mas mesmo assim consegui agarrá-lo pelo pescoço. O cigarro caiu e assobiou no chão. Sua expressão era de medo. Medo genuíno. Que delícia.

- Não... fui... eu... que... - engasgou ele. Apertei mais seu pescoço.

- Estou pouco me fodendo. Você está perto. É o suficiente.

Ele começou a se debater, mas estranhamente não tinha força alguma. Era apenas uma sombra raquítica, uma imagem projetada de um ego inflado. Uma xerox amarelada e borrada. Não valia o esforço. Com uma joelhada em seu estômago larguei-o sobre uma poça d'água. Foi quando eu vi o ego original escondido sob um oratório. Seus olhos estavam arregalados como os de um cachorro prestes a ser atropelado. Olhei para ele e sorri.

- Está com medo do que? Não era isso o que você queria?

Ele não respondeu. Ficou ali, parado com sua cara de pastel amanhecido. Não me fiz de rogado e chutei sua criatura mais uma vez. Acho que ambos sentiram o golpe. Espero que tenham sentido. Puxei catarro e cuspi no rosto disforme aos meus pés.

- Você queria isso que eu sei - eu disse, em meio a uma risada. - Agora agüenta. E não me diga que não avisei!

Ele se virou e saiu correndo. Apenas observei enquanto ele cambaleava por entre os túmulos em direção à saída. Não o persegui. Sabia que o veria de novo ainda. Alguns carrapatos são mais difíceis de se livrar que outros. Mas a mensagem estava dada. Ajeitei o máximo que pude meu paletó vagabundo e fui embora. Para casa. Para a nova vida.

Agora agüenta.

Não diga que não avisei.

5.5.08

Anti-atividade

Doutor,

sabe como aumentar sua respeitabilidade no ambiente de trabalho com apenas uma frase? É simples. Deixa eu explicar passo a passo pois você é meio lentinho:

1) Aguarde o exato momento quando estão instalando alguma coisa, tipo carpete, divisórias, etc. Programas de computador não vale.

2) Quando começarem a espalhar aquela cola que tem aquele cheiro característico (é, ESSA mesmo) pare do lado e abra um sorriso.

3) Quando algum superior seu passar por perto, simplesmente largue a frase: "Ah, que saudades do meu tempo de moleque...".

4) Aproveite o respeito recém adquirido.

Viu que fácil, doutor?

Vou longe nesta empresa, não acha?