21.7.08

Epitáfio

Doutor,

quando cheguei na porta dele suas últimas palavras ainda reverberavam em meu crânio. Tava tudo errado. Eu não devia estar ali. Mas toquei a campainha mesmo assim. Ele abriu a porta.

- A gente precisa conversar - disse eu, sem cumprimentá-lo.

- Entra.

Entrei.

- Apê legal.

Ele não disse nada. Só trancou a porta e foi em direção ao sofá. Estava de cuecas apenas. A TV ligada num enlatado americanóide. O notebook zumbia no sofá. Ele sentou e colocou-o no colo.

- Tem breja na geladeira.

- Deixa que eu pego... Caralho! E eu achava que minha cozinha era bagunçada...

- Cala essa boca e traz uma pra mim também.

Abri a geladeira e percebi que, caso quisesse outra coisa além de cerveja estaria na roça. A não ser que eu tomasse cerveja com mostarda escura. Catei duas latas e sentei do seu lado no sofá. Na mesma hora um gato pulou no meu colo, quase me fazendo derrubar as latinhas.

- Que PORRA você tem com gatos, cara?

- Gosto de criaturas autênticas.

- É esse o problema?

Ele abriu a cerveja e tomou um gole. Depois deixou a lata no chão e digitou alguma coisa no teclado. Fiquei sem minha resposta.

- Escrevendo?

- Não. Xavecando no MSN.

- Putz...

- Que foi?

- Nada.

Recostei-me. Era tudo tão diferente da última vez. O clima, o ambiente, tudo. Bem diferente. Mas estranhamente familiar. Familiar até demais.

- Então é isso?

- Acho que é.

- Assim, sem explicações?

- Que explicação você quer ouvir?

Pensei um pouco.

- Qualquer uma.

- Esse é o problema.

- Hein?

- "Qualquer uma"? Isso lá é resposta? Isso por acaso é um diálogo? Não, não é. Isso não é interessante. Isso não é instigante. Isso não é nada. É morno. É perda de tempo. De criatividade. Desperdício. E eu odeio desperdícios.

- Você mudou...

- Você também. Ambos mudamos. Acontece. Estou mudando agora. Mudando a mim mesmo. Mudando você. E mudanças requerem sacrifícios. Chega uma hora que a gente percebe que não tem mais porque teimar com uma coisa que não tem mais futuro. É como escavar um poço seco. Acabou, muda de lugar. Muda. Para não cansar. Para não desgastar. Para não entediar. E, depois de quatro anos da mesma porcaria, já estou ficando entediado. Tenho mais medo de tédio do que da morte.

- Eu também achava que tinha.

- E não acha mais?

- Acho que não...

- Taí tua explicação.

Aquilo não estava indo bem. Virei mais um gole e acendi um cigarro. Ele me passou um cinzeiro forrado de bitucas.

- Sabe o que o doutor me disse?

- Claro que sei.

- "Você está curado, Zebedeu". Foi isso que ele disse.

- Arrã.

- Você concorda com isso?

- Não sou psiquiatra.

- Não brinque comigo.

Ele finalmente fechou o notebook e colocou-o sobre o pufe à nossa frente. Acendeu um cigarro e se ajeitou no sofá. O gato foi pro seu colo.

- Acho que sua cura nunca foi o objetivo. Talvez a minha. Mas será que eu estava realmente doente? Será que você era a causa ou o sintoma? Ou a reação imunológica? Para você tanto faz. Para mim é que a coisa pega. Em determinado momento nós nos dissociamos. Deixamos de ser o reflexo retraído de um e viramos dois. Foi o primeiro passo. Daí percebi que dois era demais. Queria voltar a ser apenas um. Uma unidade autêntica. Mas para isso eu teria que escolher com qual personalidade ficaria: a minha, a sua ou uma amálgama das duas. A escolha era óbvia. Foi óbvia. Mas para isso eu teria que matar eu e você.

- Pensei que o suicida era eu.

- Ninguém está falando em suicídio. É uma metáfora. Minha "morte" já aconteceu. Matei a maneira que eu era e hoje sou outro. Só faltava matar você.

- Mas você não me matou.

- Não. Eu te curei.

- Isso não é matar.

- No seu caso é.

- Puta que os pariu...

- Entendeu, né?

- E é só isso? Caixão lacrado, tchau e bênção?

- Arrã. Ao menos por enquanto. Nada na vida é definitivo. Nem mesmo a morte. Se preferir substitua a palavra "morte" por "animação suspensa". Mas não alimente esperanças. Perdi a Inspiração. Ela me virou as costas. Queria apenas amizade. Mas a Inspiração nunca pode ser apenas uma amiga. Precisa ser uma amante. Tem que queimar por dentro, tirar o fôlego e tudo o mais. Se não tenho mais uma inspiração digna deste rótulo, de que adianta adiar o inevitável? Sou contra a decadência. E engole esse choro! Olha que coisa mais triste. Eu xingando e você chorando. Inverteu tudo, porra! Que motivo você pode me dar para eu mudar de idéia? Nenhum. Não adianta. Para finalmente evoluir eu preciso matar o psicopata enrustido. Então é isso.

- E o que eu faço agora?

- Não é mais problema meu. Termina tua cerveja. Pega outra se quiser. Mas depois vai embora. Some daqui e não volta nunca mais.

Ele abriu o notebook novamente e o pousou no colo. O papo havia terminado. Levantei e joguei a lata no lixo. Abri a geladeira e peguei outra. Pensei em voltar ao seu lado no sofá mas vi que ele tinha razão. Era hora de ir embora. De mudar. Eu estava curado, se é que algum dia estive doente. Atravessei a porta e peguei o elevador. Saí na noite da cidade. Respirei o ar poluído e caminhei até a portaria. Era uma noite feia, fria e fedorenta. Mas era minha noite. Minha derradeira noite. E eu ia aproveitá-la ao máximo. Entrei no carro e dirigi para longe dali. Para longe daqui.

Valeu, doutor.

2.7.08

Autossomia Dissociativa

Doutor,

a melhor maneira que encontrei de iniciar um de meus relatos semi-biográficos-calcados-no-absurdo sempre é localizá-lo em um bar. É, este é um daqueles. Tem quem goste, tem que odeie, tem quem está pouco se fodendo. Me incluo no último grupo. Então, estou num bar. A cena típica. Bunda no tamborete, cotovelos no balcão, uma cerveja amornando à minha frente. Imagine você mesmo a decoração e a música ambiente (embora eu sempre imagine um velhinho sentado em um piano de cauda tocando bossa nova, mas espero que Jung explique essa). Pouco importa. É aquele momento típico de reflexões incongruentes. Neste momento sento-me ao meu lado.

- Começou?

- Claro. Achou sinceramente que ia permanecer incólume nesta situação?

- Tinha esperanças.

- Já era.

Pedi um uísque. Espero que eu tenha dinheiro para pagar. A bebida chega e tomo um trago, estalando a língua. Aproveito e acompanho-me com um grande gole do chope morno. Sabia que ia precisar.

- É esquizofrenia ou múltiplas personalidades?

- Não sei. Pode ser uma reação ao álcool e os tarja pretas.

- Seria pedir demais uma simples overdose acidental?

- Claro.

Terminei o chope e empurrei o copo, indicando que queria um refil. Eu ia precisar, pois logo em seguida sento-me do meu outro lado.

- É uma convenção?

- Acho que não. Só se for de egos.

- Não tenho um ego tão grande assim.

- Tem. Um superego.

Peço um gin tônica. Por que fiz isso? Sempre odiei gin tônica!

- Não odeia, não. Pensa que odeia. Mas no fundo gosta.

- Acho que tenho que acreditar.

- Não, não tem.

- E o senhor, vai querer alguma coisa?

Levanto o rosto para xingar o garçom, mas o garçom sou eu.

- Até tu, brucutu?

- Hein?

- Eles eu até esperava. Mas e você?

- Sou apenas uma auto-referência egomaníaca. Vai beber o que?

- Tem cianureto?

Eu ri. Quatro vezes. E me servi mais um chope.

- Qualé o papo?

- Quem começa?

- Quer um guardanapo?

- Pra quê tantas perguntas?

Observo uma bunda apertada numa calça jeans passar enquanto checo as horas, lavo copos e sinto vontade de fugir correndo.

- É só comer e jogar fora.

- É só se degradar por conta de uma boceta insignificante.

- O segredo da vida está no colo de um útero. Ou no fundo de um copo de tequila.

- Ai, meu saco...

- Que foi?

- Ele quer que falemos alguma coisa útil ou pulemos fora.

- Odeio usar gravata borboleta.

- Odeio vocês.

- Claro que odeia.

- Pega o telefone e liga pra alguém. Alguém especial. Alguém que mereça dividir sua vida com você.

- Essa pessoa não existe.

- Não ouça o que ele diz. Você sabe que existe.

- Eu já encontrei a pessoa ideal...

- Ninguém está falando com você. Traz mais uma dose.

- Imagina você estrangulando a vida dessa vadia pouco a pouco. Beijando seu último suspiro.

- Não tem suspiros. Serve amendoim?

- E qual o sentido de matá-la? O que eu ganharia com isso?

- O que você perderia?

- Viu? Até ele concorda.

- Psicologia reversa.

Bato a cabeça no balcão. Quatro vezes. Quando levanto ainda estou lá, me cercando.

- Cadê a porra da minha cerveja?

- E meu uísque?

- E meu gin?

Eu fico meio perdido. Daí arranco a gravata borboleta e confidencio comigo mesmo:

- Nada disso é necessário. Você sabe o que é necessário. Sabe o que tem que fazer. Pare de dar ouvido a contradições. Levante e aja. Chega de se dissociar. Seja. Chafurdar em autocomiseração não adianta nada. Você é um bosta, mas até aí todos somos. Levanta essa cabeça e manda todo mundo tomar no cu. Agarre a vida pelo pescoço. Olhe para ela bem no fundo de seus olhos e beije-a na boca como se fosse a última vez. Talvez seja. Nunca se sabe. Não racionalize. Não perca tempo com elocubrações. Cale-se e ouça. Olhe em volta. Você está sozinho. Sempre esteve e sempre estará. É com você. Foda-se. Enfie cerveja, uísque e gin no rabo se quiser. Não adiantará nada e não trará sentido algum. E para mim chega. Estou fora.

- Eu também.

- E eu.

Partimos. Um para cada lado. Só eu fiquei.

- E quem vai me servir mais um chope, cáspite?