20.8.06

Arcanos Arcaicos

Ela fechou os olhos e virou a face transtornada. As mãos seguravam a mesa como se todo seu corpo dependesse daquele apoio para não desabar no chão. Uma lágrima mergulhou na face suada.

- Olha para mim - eu disse, inicialmente com calma. - Olha, porra!

Ela obedeceu. Ao menos em parte. Não olhou para meu rosto, mas para a faca em minha mão. Tramontina. Boa para destrinchar carne.

- Por favor...

- Eu já te disse. Cinqüenta por cento de chance.

- Eu...

- Fala!

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Doutor,

você sabe que eu sou um cético amargo por definição. Não engulo nenhum tipo de bobagem metafísica que vez ou outra tentam empurrar por minha garganta. Regurgito cinismo junto com bílis e miojo meio digerido. Prefiro morrer na ignorância a inventar algum tipo de solução mística profilática. Não quero ser enganado. Não gosto de ser manipulado.

Então por que eu entrei lá?

A placa gritava em minha retina: "Tarô através da vidência". Pleonasmo, já que a primeira depende da última para funcionar. De outro modo seria apenas... acaso. E místicos adoram o mantra de que nada acontece por acaso. Mas divago. O lance é que eu entrei. Uma casa simples. Pobre sem ser miserável. Decoração que faria um camelô se envergonhar. Muito tule roxo. Incenso. Estatuetas de gesso de diferentes divindades, de diferentes religiões. Símbolos zen budistas misturados a outros de Feng Shui. Um ideograma sânscrito do Om balançava como um penduricalho em um daqueles irritantes sinetes de vento. E ela, que merece um parágrafo curto, mas só dela:

Cabelos negros encaracolados escorrendo pelas costas, empapados de creme para pentear. Um lenço puído cobria o frizz no topo. Olhos cansados e muito maquiados. Unhas vermelhas compridas. Lábio leporino. Roupa pseudo-gótica de brechó.

Me ofereceu uma cadeira. Eu aceitei.

- E aí, o que vai ser? - perguntou ela, enquanto acendia um cigarro sem pedir permissão. De algum modo conseguiu embaralhar as cartas amarrotadas, mesmo com aquelas unhas nojentas atrapalhando. Eu previa uma artrite em suas falanges, e não era vidente. Ela era. Não respondi à sua pergunta. - Olha - continuou - Eu preciso ter alguma informação. Amor, trabalho... O que vai ser?

Decidi testar sua competência. Baixei os olhos, numa fingida submissão. Nunca quis tanto em minha vida conseguir forçar o choro. Não precisei. Ela engoliu.

- Está tudo bem. Você pode confiar em mim...

Vaca, vaca, pensei. Como confiar em uma piranha vidente com aquelas unhas? Ela ia ter que se esforçar mais do que aquilo.

- Olha - disse ela, num tom quase maternal. Quase. - Eu sei que pode parecer duro, sem solução, mas eu posso te ajudar. Mas preciso que você me dê uma força, senão não tem jeito.

- Não.

- E por que não?

- Porque videntes não deviam fazer perguntas. São pagos para prover respostas.

Ela finalmente entendeu. Com certeza eu não era o primeiro chato cético que ela precisou lidar. Abriu um sorriso desafiador e colocou o baralho à minha frente na mesa.

- Corta.

Obedeci. Ela pegou de volta as cartas e as espalhou num padrão bizarro na mesa. A Roda da Fortuna. O Louco. O Diabo. O Sol. O Julgamento. E, é claro, a Morte.

- Olha só! - disse ela, fingindo surpresa. - Apenas arcanos maiores!

Abri um sorriso. Ela começou sua leitura.

- O Diabo é seu passado. São as correntes que o oprimem, a sua prisão. A Roda da Fortuna é o seu presente. É onde você está agora, num momento de transição. Em seguida virá o Julgamento. Seu futuro dependerá da decisão que você tomar agora. Vai ser a inconstância do Louco? Ou a estabilidade do Sol?

Olhei para as cartas.

- E a Morte?

- Simboliza a transição. Não é uma carta ruim como parece. Pelo contrário, significa que há uma solução para sua aflição, e que ela depende de você.

Mirei as cartas espalhadas na mesa sem falar nada. Ela aguardou pacientemente. Acendeu outro cigarro na bituca do primeiro. Prevejo um efizema pulmonar. Estou ficando bom nisso.

- Você não respondeu nada - eu disse, finalmente.

- Você não perguntou nada - retrucou ela, petulante.

Estendi a mão e peguei a carta do Louco. Carta feia, desenho tosco. Não gostei do que vi. Mas também não gosto de me olhar no espelho.

- Esta é sua decisão? - perguntou ela, interrompendo minha análise.

- É - respondi. - Acho que este sou eu - peguei a carta da Morte. - E esta é sua.

Ela riu, desapontada.

- A consulta acabou. Por favor, retire-se.

Saquei então a faca que estava no bolso de minha jaqueta. Finquei a ponta da lâmina bem no meio da carta do Louco, pregando ambos no tampo da mesa. Pelo salto que ela deu, parecia que tinha acertado seu coração. Aposto que ela não tinha previsto aquilo.

- Eu não preciso fazer nenhuma pergunta, mas você é obrigada a me dar uma resposta. E a resposta que eu quero é simples. Um mero sim ou não.

- Eu, eu...

- Sim ou não. Cinqüenta por cento de chance. Se for a resposta certa, você vive. A errada, vou cortar seu estômago. E eu vou te ver sangrar aos poucos até... - peguei a carta na mesa - a Morte.

Ela fechou os olhos e virou a face transtornada. As mãos seguravam a mesa como se todo seu corpo dependesse daquele apoio para não desabar no chão. Uma lágrima mergulhou na face suada.

- Olha para mim - eu disse, inicialmente com calma. - Olha, porra!

Ela obedeceu. Ao menos em parte. Não olhou para meu rosto, mas para a faca em minha mão. Tramontina. Boa para destrinchar carne.

- Por favor...

- Eu já te disse. Cinqüenta por cento de chance.

- Eu...

- Fala!

Ela pensou por um instante. Fungou e engoliu catarro. A maquiagem escorria. Olhou para mim, me odiando. Gostei daquele olhar. Coragem.

- Sim.

Relaxei os ombros. Dei a volta na mesa e me abaixei ao seu lado. A faca pendia indolente em minha mão. Se quisesse, seria fácil me desarmar, mas ela não arriscou. Previu algo? Sentiu algo? Como ter certeza? Ah, a dúvida. Ah, a loteria da vida! Ela não era imune à isso?

- Meus parabéns - eu disse, apertando levemente seu ombro. - Era o que eu queria ouvir. Mas vou levar isso comigo.

Mostrei a carta da Morte. A carta que eu disse ser dela. Torço para que entenda a metáfora.

Levantei-me, paguei a sessão e saí do "consultório".

Qual era a pergunta, doutor?

Tem certeza que quer saber?