24.12.06

Antevespertina

Doutor,

não era para acontecer. Mas fomos forçados onomatopeicamente a nos comunicar. O chique-chieque de seu isqueiro sem gás estava interferindo em minha meditação meditabunda. Alcancei meu isqueiro sobre o balcão e empurrei-o para ela.

- Obrigada.

De nada. Era pra ficar nisso. Mas não tinha jeito. É o lance dos vasos comunicantes, saca? Eu vazio. Ela até a boca. E transbordou.

- Odeio o Natal.

Hum. Mais uma. Sou pára-raios de pirado.

- Desculpa.

Eu quem peço desculpas. Não percebi que estava falando. Às vezes acontece. Aconteceu. Aliás, está acontecendo. Garçom? Dá um chope pra ela por minha conta. Ainda bem que não tenho que me preocupar em gastar o décimo terceiro em ceia ou presente.

- Brigada.

Esquece. Agora por que alguém tão bonita não gosta do natal? Eu tenho todo o direito. Sou feio, amargo e anti-social. Mas se eu fosse uma mulher com este corpão com certeza não estaria sozinho num bar falando comigo.

- Antevéspera de Natal é pior que véspera. É uma porcaria de expectativa que te fode.

É só uma data. Podia ser qualquer uma. Convenções, convenções. Quem precisa delas? Qual é o galho? Seja sincera.

- Ele tinha que ser casado, porra?

Taí. Tava demorando pra abrir o jogo. Coisa mais patética um mulherão desses se perdendo por um babaca casado. Tanto homem por aí. Qualé, bonitona? Tá precisando se valorizar um pouco mais...

- A esta hora deve estar lá, dormindo abraçado com a vaca. Bobear tá dando uma trepadinha natalina.

Mulher casada não trepa no natal. Está mais preocupada com a ceia, com os parentes, com os filhos, com o peru errado, essas coisas. Acho que todas as mulheres casadas do mundo menstruam no natal. Relaxa. Aliás, não tem por que você ter ciúmes da oficial. Deixa de ser besta.

- Eu sei que é bobagem. Mas o que eu posso fazer? Ele... Caralho, nem sei o que ele tem. Olha pra mim: você acha que eu preciso disso?

Claro que não. Nem disto nem daquilo. Mas quem sou eu para julgar?

- Onde eu estava com a cabeça? Ele me enrolou direitinho. Só abriu o jogo depois que já tinha me ganhado. Justo eu, que achava que nunca ia cair numa dessas! Burra, burra!

Garçom! Traz logo mais dois que a conversa vai ser longa.

- Era perfeito demais pra não dar merda. Bonito demais, rico demais. tinha que ter defeito. Como eu não imaginei que um cara desses não estaria comprometido? É o que dá acreditar em dádiva, em presente dos céus. Presente não vem de graça. Tem que ter um preço. Tem que ceder um naco da tua alma!

Uma alma que eu destrincharia com prazer. Naco por naco. O primeiro seria a língua. Alma tem língua? Pois se tivesse eu laberia tua alma.

- Depois ele veio com um papinho de aranha. "Tenho que te contar uma coisa...". "O quê?". "Sou casado". "Como é?". "Sou casado.". E o que eu fiz? Dei mais uma. Com gosto. Caralho...

Ah, as lágrimas da culpa. Tão azedas. Tão abundantes. Toma um guardanapo. Essas lágrimas podem corroer o tampo do balcão.

- Brigada. Olha, desculpa, você não tem nada a ver com isso...

Relaxa.

- ... mas o lance é que eu tava precisando desabafar com alguém. Garçom, traz mais um chope pra ele. Desta vez eu pago.

Eu aceito. Certas ações clamam compensações. Mas sinto que preciso deixá-la devendo mais um pouco. Para cobrar depois.

- O pior é que a gente se vê todo dia. Ele é cliente da firma, aparece direto. Quando estamos juntos é como se não existisse mais ninguém no mundo. Ah, eu faço qualquer coisa por ele. Qualquer coisa! E ele por que não larga a mulher de uma vez? Por que ele não aceita que é feliz comigo e não com ela?

E por que você não fala isso pra ele? Já sei, para não ouvir a resposta que sabe que ele vai dar. Que não pode largar a mulher agora, que a situação não é propícia, essas merdas. Aceita, lindona, o cara tá na melhor situação possível. Por que ele vai jogar tudo pro alto por causa de uma coisa que ele já tem?

- Eu não sei mais o que fazer.

Eu sei. Viro o chope com gosto. Puxo a comanda e me levanto. Ela nem nota, perdida nas bolhas de seu copo. Toco seu ombro. Sussurro em seu ouvido. No próximo encontro leva uma faca. Corta o pau dele fora. Faz ele ver. Depois leva ele pro hospital e pede para fazerem um reimplante. E some da vida dele. Some da tua vida. Se mata, se tiver coragem. Este é meu presente de natal pra você. Um inspiração.

- Tchau, moço. E obrigada por tudo.

De nada, lindona. De nada.

Este natal promete, doutor.

12.12.06

A Vida Fora de Mim

Doutor,

foi uma daquelas coisas que batem sem aviso, saca? Sem motivo.

O cenário era comum: viaduto Santa Ifigênia. Eu desviava de transeuntes e camelôs, quando de repente uma clareira se abriu. Como uma nesga de sol num dia frio. Eu eu estava lá, no meio daquele vácuo metropolitano. Larguei minhas coisas e dei um giro. Depois outro. A dobradiça da nuca se estendeu ao máximo e tudo que entrou pela janela de minha íris foram as nuvens e o topo dos prédios orbitando minha visão periférica. Abri os braços e saí de mim.

Ei! Quase me acertou! Cada maluco que a gente encontra! Que é que dá numa pessoa para ficar girando no meio do caminho? Qual era o número do trabalho dele mesmo? Merda, sem sinal! Vou comprar qualquer coisa pra mãe dele. Vaca, nunca me olhou na cara e ainda tenho que comprar presente bom? Vou comprar qualquer merda num camelô e colocar numa embalagem fuleira mesmo. Ela vai reclamar de qualquer jeito, então pra que me preocupar? Cuidado aí, apressadinho!

Sai da frente! Droga, droga droga! Um probleminha de nada! Precisava me chamar? Mas de hoje não passa. Vou lançar uma dúzia de currículos. Não estudei seis anos para receber esse tipo de tratamento. Trabalho sábado, domingo e feriado e ganho o quê? Nem um tapinha nas costas! Promoção, então, só se eu matar meu superior. E pior que aposto que nem assim eles me promoveriam. Cambada de incompetentes! Cuidado com o maluco girando! Olha, esse jogo eu não tenho...

Só mais dez e eu fecho a barraca. Tá foda. Pára de fuçar e compra logo, moleque! Se pedir eu dou desconto, não fica cheio de dedo. Mão de vaca do caralho. Caramba, com mais dez eu faço milão e já garanto pelo menos a ceia. Isso se a bruaca não gastar tudo com bobagem. Ô mulher mais gastadeira! É só eu trazer cem que ela já gastou duzentos! Deve ser por isso que o doidão tá girando aí... Que? O Rapa? Ah, não, agora não. Sai, moleque! Merda, caiu um monte! Merda, merda!

Parece um bando de barata fugindo da luz. Corre pobraiada! Olha lá, eles correm, os pobres pegam o que cai no chão, e em segundos o viaduto está limpimnho. Trabalho bom esse. Nem precisa sacar o berro. É só ligar a sirene uma vez e parece formigueiro em véspera de chuva. Coisa linda de se ver. Adoro ser autoridade. Quem? Aquele louco? Ih, mano, deixa ele girar a vontade. Dá a maior dor de cabeça preencher formulário de pirado. Prefiro prender aquela bundinha ali...

Será que ele merece? Ah, e daí? Não é gasto, é investimento! Chega de roupa apertada e viver de aparência. Ele já me deu umas olhadas no escritório, deve estar a fim. Mas eu tenho que valorizar o passe. Senão ele vai, come, joga fora e eu continuo na mesma. Preciso mostrar pra ele que eu mereço mais do que isso. Tenho que dar um presente bom. Coisa fina. Ai, meu São Crediário, me proteja! Ih, olha o piradão girando ali! Haha, que engraçado! Vou tirar uma foto com o celular! O pessoal do escritório não vai acreditar... Ei! Pega!

Vacilona. Babau. Corre! Ih, os home! Cai pra esquerda, cai pra esquerda! Olha a frente! Ó o cara, meu, girando que nem pião! Cada uma... Desce a escada, vai. Olha a tia! Droga!

Ai, Jesus! O que é isso? Desgramado, pelo menos me ajuda a levantar! Odeio trombadinha! Obrigado, moço. É, a sacola é minha, sim. Muito obrigado, viu? Será que quebrou alguma coisa? Ah, depois eu vejo. Agora estou atrasada. Não, moço, eu tô bem, não se preocupa não. Obrigado mesmo. Quem? Ah, é só alguém feliz. Deve ser, pra ficar girando daquele jeito. Ou é maluco. Não, tá tudo bem mesmo. Brigadão. Tchau. Ufa, foi só um susto. Agora é só pegar o metrô que eu chego em casa e tomo um banhão... Ei, cadê minha carteira?

Putz, só tem bilhete único na carteira da velha! Nem um trocadinho! Cartão só de débito. Carteirinha do INSS. Foto da família. Tanto trabalho pra nada! E se eu pegasse as coisas do pião lá do viaduto? Nem, pela cara o babaca não deve ter nem onde cair vivo. Pô, a velha podia ter uns trocadinhos, né não? Bom, fazer o que? Joga essa merda fora e bola pra frente!

Uma carteira! Não, eu não vou abrir, não. Sei lá, acho invasão de privacidade. Não, nem vou gritar "Quem perdeu uma carteira?" que vai aparecer um monte de espertinho. Não sou tão bobo. Não, não vou ver se tem grana! Não acredito que você pensou nisso! Sou honesto! Trouxa não! Olha o respeito! Baixa a bola você! Não grita! Ai, que vexame! Tá bom, tá bom, desculpa... Olha, eu tô me desculpando! Dane-se essa porcaria de carteira! Quê? Não, não vai girar com o cara não! Eu vou embora, Flô! Juro que nunca mais você vê minha cara! E você, tá olhando o que?

Barraqueiro. Também, com um puta mulherão desses, qualquer um perde as estribeiras. Comigo ela ia ficar pianinho. Nada, não, seu moço! Fica na tua ou te faço amanhecer com a boca cheia de formiga. Cada uma que me aparece! Vou é logo pra casa que a patroa tá esperando. Um dia mato a vaca. Não pára de engravidar! Cacete, é tão difícil se controlar? Não tem mais de onde tirar dinheiro pra sustentar tanto filho! Devia socar aquela barriga toda vez que embuchasse. Porra, ela acha o que, que dinheiro dá em árvore? Daqui a pouco não tem mais semáforo que chegue pra tanta criança. Bom, melhor isso que ficar tantã e sair girando num viaduto...

Volto a mim, junto com uma ânsia terrível. Cambaleio até a beirada do viaduto e quase vomito no Anhangabaú. Alguém tenta me ajudar, mas espanto com um safanão. Tira os olhos de minha carteira, seu puto! Corto sua mão e enfio no seu cu! O estômago remexe, regurgita e reclama coisas ininteligíveis. Arroto. Alguém me chama de porco. Recebe um dedo médio como resposta pouco convicta. Me debruço no parapeito e observo a multidão no Anhangabaú. Bem no meio da praça, numa clareira entre transeuntes e camelôs uma garota rodopia alegremente no mesmo lugar, a cabeça jogada para trás. Observo-a pelo tempo que leva para ela parar de girar e olhar para mim. Me manda um beijo. Disfarço, recolho minhas coisas e vou embora.

--

Como esta será provavelmente a última vez que nos falamos este ano, deixo para o Doutor uma mensagem de Paz:

Espero que em 2007 o senhor descanse em paz.

24.11.06

A minha Morte

Doutor,

nós sabíamos que um dia chegaria a este ponto, não sabíamos?

Eu estava lá, mirando os vidros de remédio vazios em cima da mesa, o copo com uísque barato derretendo gelo, a garrafa com apenas um fundo de bebida. Já sentia a ponta dos dedos dormentes. Uma sensação boa. Uma sensação libertadora. Não havia arrependimento, não havia tristeza. O silêncio arpejava em meu corpo suas escalas mudas, e eu começava a fazer parte daquela sinfonia. Dissolvia-me no éter, sublimava na irrealidade. Acho que sorria. Daí ela entrou.

Tinha certeza que tinha trancado a porta, mas vendo-a puxando uma cadeira e sentando no outro extremo da mesa já não tinha mais tanta certeza. Não tinha ouvido a porta abrir. Ela jogou os cabelos negros e alisados para trás dos ombros, deixando apenas a franja indolente invadir seu rosto. Olhos grandes e maquiados, rosto oval e boca carnuda. Belos peitos de silicone, cinturinha lipoesculturada, bunda arredondada no tapa, coxas fortes. Adivinha quem acordou?

- Quem é você? - perguntei, segurando a baba que escorria da boca.

- Você sabe.

- Querida, eu nem sei mais quem eu sou.

- Sou a sua Morte.

Não consegui conter uma risada fungada.

- O que foi? - perguntou ela, franzindo as sobrancelhas neuroticamente pinçadas.

- Dá pra ser mais clichê? Eu, no final, delirium tremens, antropomorfizo a Morte como a Juliana Paes!

- É quem eu sou?

- Não, você é a Morte.

- Não sou, não.

- Mas você disse...

- Eu disse que sou a SUA Morte. Não sou A Morte.

- Putz, nem a oficial eu atraio. O que é você, uma estagiária?

Ela me olhou e sorriu. Minha calça estava ficando apertada.

- O que você quer? - perguntei, tentando alcançar o copo. Mas meu braço não me obedeceu. O copo dançou quando encostei os dedos inertes nele, mas não saiu da mesa.

- Nada. Eu só cheguei.

- Brega, brega. Gostosa, mas brega. E clichê – tombei o corpo e tentei focalizar o cérebro o suficiente para levar o copo até a boca. Consegui, mas me babei todo. - Aliás, eu já li esse livro.

- Eu sei.

- E não gostei do final.

- É por isso que estou assim?

- Você pergunta?

- Sou gostosa?

- Querida, só não empacotei até agora porque você acionou canais sangüíneos que já deveriam ter sido esquecidos.

- Você quer dizer, seu pau?

- Não faz isso...

- Desculpe.

- A Morte não se desculpa com ninguém.

- Não sou A Mor...

- Tá, tá, saquei.

Consegui beber mais um gole. Ela se levantou e deu a volta na mesa. Pegou a garrafa e encheu meu copo.

- É isso?

- É, acho que sim.

- É só isso? Você não vai falar nada? Não vai me passar um sermão? Um video com minha vida medíocre? Uma lição de esperança? Um passaporte para o Vale dos Suicidas?

- Não.

- E cadê a porra do túnel?

- Você quer um túnel?

- Não. Eu queria ver seus peitos.

Ela baixou o decote. Meus olhos quase saltaram das órbitas.

- Isso te fez feliz?

- Querida, se eu fosse imaginar a minha Morte, seria exatamente assim.

- Eu sei.

Ela não subiu o decote. Encostou aquele bundão na mesa e ficou me olhando.

- Você vai me levar?

- Para onde você quer ir?

- Não sei...

- Então não.

- E o que você veio fazer aqui?

- Para um suicida, você faz muitas perguntas.

- E isso não é o que é um suicida? Um cara cheio de perguntas sem resposta?

- Não. É um cara que achou uma única resposta para todas as perguntas.

- Preciso dar uma mijada.

- Quer ajuda?

- Não faz isso...

Consegui cambalear até o banheiro e fazer um lançamento oblíquo de urina.

- Posso perguntar por que?

- Se minha própria Morte não sabe, quem sou eu para saber?

- Sei lá. Achei que tinha algum motivo.

- Às vezes a ausência de motivos é motivo o suficiente.

- Que bonito.

- Obrigado.

Voltei ao meu lugar. Ela continuava lá, sentada na mesa com os peitos pra fora.

- Cobre essas coisas.

- Não gosta mais?

- Ah, cala essa boca!

Óbvio que ela obedeceu.

- O lance é que eu te chamei, mas não quero mais. Você é uma Morte gostosa e eu não quero isso. Não mereço uma Morte gostosa. Você deveria vir aqui feia, acabada, entrevada e cheia de verrugas. Vazando pus pela boceta. Aí eu te abraçaria. Desse jeito não dá.

- E o que você vai fazer então?

- Isso.

Saquei o revólver e dei dois tiros naqueles peitos. Ela levou os golpes e caiu da mesa. Cambaleou um pouco e me olhou. Sangue encharcava sua camisa e escorria por seu queixo. Tinha medo nos olhos. Engatilhei o revólver como fazem no cinema. Ela sorriu quando viu o cano apontado para sua cabeça.

- Você sabe que isso não vai adiantar nada. Eu volto.

- Eu espero que sim.

Blam! Espalhei seus miolos no assoalho. Caí sentado do lado do corpo. A minha Morte estrebuchava. Eu tinha matado a minha Morte.

O som dos tiros alertou os vizinhos. Miraculosamente uma ambulância chegou a tempo de me fazer uma lavagem estomacal. Seis horas numa enfermaria e aqui estou de volta, tendo como únicas testemunhas os três buracos de bala, dois na parede, um no chão.

Tenho uma nova receita para o senhor, Doutor. Mais uma mancha na prancha Rorschach de meu cérebro. Mais uma tarja preta em meu prontuário.

Mais um atestado da sua incompetência.

6.11.06

Pau de Fogo

Doutor,

comprei uma arma.

Nem sei porque. Simplesmente comprei. Descobri que iria conseguir fechar as contas do mês com alguma folga, e como isso não acontecia há algum tempo decidi gastar este resto de grana em algo que me satisfizesse de alguma maneira. Eu estava caminhando pela rua quando fui abordado. Psiu, quer comprar um revólver? Como é? Chega aí. Olha. Três oito, número de série raspado. Você tá querendo me empurrar uma gelada? Como vou saber que você não matou alguém com essa arma? Meu, pelo preço que estou fazendo não dou direito a perguntas e nem garanto respostas. Gostei da argumentação e fechei o negócio. Cheguei em casa com um trezoitão em um bolso da jaqueta e uma caixa de munição de brinde na outra.

Não, eu não sei realmente o que me levou a comprar aquela arma. Do jeito que foi pareceu que ela me foi vendida pelo demônio em pessoa. O doutor bem sabe que eu não acredito nessa coisas, mas que pareceu coisa de intervenção demoníaca, isso pareceu.

A princípio eu não tirei a arma do bolso. Deixei-a lá, pesando minha jaqueta. Tirei a caixa de balas e coloquei sobre a mesa. Abri, e vi a pequena plantação de cabeças de chumbo enfileiradas. Tirei uma cápsula e olhei bem. Me deu vontade de abrir, de dissecar aquela pequena maravilha da tecnologia. Uma coisa tão simples, tão básica, mas tão bonita, tão letal. Reprimi o impulso, pois não sabia como fazer e podia dar alguma merda. Melhor não arriscar.

Meu pai tinha um revólver. Era pequeno, prateado e quase nunca saía do estojo. Calibre .22. Arma de moça. Deixava-a ao alcance, na gaveta do criado mudo do seu lado da cama. Mantinha a munição escondida em local desconhecido, se é que havia alguma. Tinha muita criança em casa. Um dia entrei no quarto dele com meu primo e fomos vê-la. Claro que ele nos flagrou na hora. Mas não brigou com a gente, não. Fez muito pior. Sentou do nosso lado e pediu para segurar a pistola. Pegou-a com certa reverência, com a ponta dos dedos. Mostrou com este gesto que respeitava a arma, mesmo sendo adulto, e que deveríamos fazer o mesmo. Ficamos quietos vendo-o verificar se estava descarregada. Daí ele girou o tambor e fechou-o com um estalo metálico que retiniu em nossas almas. Então deu-a para mim. Pega, disse, não tem problema. Peguei igual a ele, com a ponta dos dedos. Agora mira na cabeça do teu primo. Ambos arregalamos os olhos. Vai, não tem perigo. Quero te mostrar uma coisa. Obedeci, mas tremendo. Meu primo quase se borrou todo quando o cano gelado encostou em sua testa. Abre os olhos, Rique. Se este for o seu último momento de vida, encare-o de olhos abertos. Uma lágrima escorreu pela face de meu primo. Várias pela minha. Queria implorar para que ele parasse com aquilo. Tinha perdido a graça, mesmo sabendo que a arma estava descarregada. Daí ele falou, com uma voz calma. Sabe que é pior levar um tiro de .22 do que de qualquer outra arma? Principalmente na cabeça. O cartucho tem pouca pólvora, e a bala não tem muita força. Num tiro assim, à queima-roupa, a bala só tem força para passar pelo osso do crânio uma única vez. Ela vara a testa e fica quicando dentro da tua cabeça, dissolvendo seu cérebro, tuas lembranças aos poucos. Não é o impacto da bala que te derruba, mas tuas pernas dobram quando a parte do teu cérebro que coordena as funções motoras vira geléia. É uma morte limpa, quase sem sujeira. É uma morte profissional. Não respondemos. Ele pegou de novo a arma de minha mão e nos enxotou do quarto. Nem preciso dizer que nunca mais brincamos com ela.

E agora eu estava lá, com um revólver no bolso. Não era para uma morte limpa. Um tiro à queima-roupa na testa transformaria a parede atrás do alvo em uma pintura abstrata de sangue, ossos e miolos. Coisa feia. Uma morte amadora, barulhenta e asquerosa.

Fui até o armário da cozinha e guardei a caixa de balas ironicamente perto do lugar onde guardo meus doces. Daí peguei na gaveta um saco plástico com fecho de vedação para freezer e rapidamente coloquei o revólver dentro. Fechei o saco ainda tremendo. Peguei então um rolo de fita adesiva e fui até o banheiro. Abri a tampa do reservatório de água da descarga e colei o saco na parede interna. Precisei dar duas descargas para conseguir, e ficou bem ruim. Mas fechei a tampa e tentei esquecer da arma.

Eu até consegui. Mas não consegui evitar de sonhar com um cérebro sendo triturado por uma bala ricocheteante. Lembra de... Quando... Daquela vez que... E uma a uma as memórias desapareciam.

Só uma lembrança ficou quando finalmente acordei: que ainda tinha uma conta pra pagar e que eu não tinha mais um puto para isso.

Nunca senti tanta vontade de dar um tiro na minha testa.

16.10.06

3.10.06

Curta

Doutor,

eu tinha acabado de sentar na poltrona do cinema. Tentava me ajeitar quando ela sentou do meu lado. Sorriu. Sorrimos.

- Quer pipoca?

- Não, eu...

- Shiu, vão começar os trailers!

--

- Gostou do filme?

- Achei uma merda. Excremento puro. Baita enrolação! Deu vontade de estrangular o diretor com as tripas do roteirista.

- Hum, eu até gostei...

- Você não pode estar falando sério! Esse lixo?

- É.

- Qual é o teu nome?

- Zebedeu.

--

Ela se chamava Lia. Assim, só três letras. Não precisava mais do que isso para defini-la. As redundâncias de seu caráter eram irrelevantes. Sem idiossincrasias desnecessárias. Sabia o que queria e não gostava de perder tempo.

--

Bem que tentamos chegar até meu apartamento, mas acabamos trepando na escada mesmo, graças ao elevador quebrado. Ela não conseguiu agüentar. Nem deu tempo de tirar toda a roupa. Foi uma rapidinha bem meia-boca. Mas ela gozou.

--

- Alô.

- Oi.

- Oi! Eu ia te...

- Vamos encher a cara?

- Como é?

- Preciso ficar bêbada. Vamos?

--

Nem bem tínhamos chegado e já foram quatro tequilas pra conta. Duas para cada um. Ela se soltou. Me puxou e me deu um beijo alcoolizado. Pra variar, fiquei de pau duro. Ela riu. Brincou com uma menina na mesa do lado, usando meu estado como de objeto de inveja. E riu quando ruborizei. Pediu mais uma tequila. Implorei para acompanhá-la.

--

O quarto girava em sentido oposto ao dela. Estava difícil ficar de pé. Sentei na borda da cama. Ela veio dançando e sentou no meu colo.

- Sabe de uma coisa?

- Não.

- Sabe sim.

- Sei nada...

- Sabe. Sabe que eu te amo, não sabe?

Pior que sabia.

--

- Porra, fecha essa porta!

- Ué, qual o problema?

- Coisa mais broxante ver mulher cagando!

- Ué, pra enfiar a cara na minha buceta você não reclama...

- Caralho, que nojo!

--

Bêbada de novo. Foi sozinha. Não estava mais com saco para aquilo. Tinha que trabalhar no dia seguinte. Amparei-a antes que caísse.

- Você não me ama!

- Não fala merda. Vem, vou te dar um banho...

- Não! Não quero! Vou embora!

- Lia...

--

Seus joelhos miravam o teto, minha cara enfiada na junção de suas coxas. Que cheiro bom, que delícia! Molhadinha. Minha língua percorria cada canto. Me perdi naquele fosso de carne quente e úmida, aberto, escancarado para mim. Tanto que não percebi que ela chorava.

Acordei sozinho.

--

Ela não apareceu o dia inteiro. Nem de noite. Não dormi.

--

A porta estava aberta quando cheguei. Vi seus tornozelos esticados balançando como os de um judas ao vento no meio da sala, a cabeça tombada sobre um dos ombros, a corda no pescoço sustentando o corpo inteiro no ar. Estava cinza e fria. Olhos esbugalhados, língua azul. Mas continuava linda.

Em cima da mesa um bilhete: "Sua culpa".

Fui embora. Deixei a porta aberta para que os vizinhos encontrassem seu corpo. Mas levei o bilhete comigo.

--

Quando cheguei em casa preguei o bilhete na geladeira. Reli (Re-Lia?) umas duzentas vezes e então corri para o banheiro e vomitei.

De porta aberta.

Cara, que semana!

24.9.06

Nada

Doutor,

dormi a tarde toda. Perdi Faustão. Acordei, comi, caguei, e estou há duas horas procurando o que fazer. Decidi discorrer sobre o nada. Nada, nada. Que nada!? (Leia como quiser).

Estou fumando demais. Mesmo. Estou sentindo que tem mais catarro que brônquios em meus pulmões.

Saí na sexta. Não rolou nada. Nada, nada e pagode, que é a epítome do nada metido à arte.

Aliás, o que é arte? Arte para mim é poeta de Orkut, que eu não leio e não me incomoda. Arte é o enaltecimento do umbigo, esse apêndice envergonhado que prova que, certa vez, não comíamos pela boca. Que temos uma genitora.

Mãe é mãe, paca é paca.

Poesia é tudo plágio.

Porque sentimento humano é cliché. É coisa requentada, mole de microondas. E eu quero lá saber se você sofre? Foda-se você e seu sofrimento! Tá sofrendo toma um porre. Se mata numa banheira cheia de merda. Olha pra mim, caralho, que eu tô falando com você! Não gostou cospe na minha cara que te beijo a boca! Beijo melado, viscoso, horripilante.

Não sei.

Não sei nada. Porra nenhuma. Caralho, o que eu estou fazendo aqui?

Mais um cigarro.

Voltemos ao nada. Ao pó existencialista.

Minha cabeça fervilha, mas não sai nada. Sou um vácuo barrigudo sentado na frente de um teclado escrevendo asneiras. E você, babaca desocupado, está lendo. Pois espera que de repente eu saia com uma frase de mestre, um pensamento esparso-metafísco-enaltecedor.

Veio ao lugar errado.

Aqui não tem nada.

Aliás, tem.

Nada.

Mas não posso parar. Não posso. Consigo, mas não posso. Comigo, mas não quero.

Querer é foder?

Pago pra ver.

Horrível, horrível.

Acostume-se com este bipolar aqui.

Que não sabe quando é positivo ou negativo.

Só vomita elétrons.

(No final, somos todos elétrons! Garçom, mais uma dose que meu spin tá parando!)

Por que todo cara metido a escritor acha que verbalizar o que vem na cabeça é arte?

Mais um cigarro.

Vende à granel?

Então me vê vinte, que a noite vai ser longa.

Isso aqui não é arte. Não é narrado por jacaré, não é poesia de punheteiro. Não vai sair na capa do caderno de cultura de jornal nenhum. É só um espasmo sociopata. Foda-se. Ninguém deveria ler isso. VOCÊ não deveria estar lendo isso!

Então chega.

Vou sair e me matar por aí.

A gente se vê.

Eu te vejo pela janela.

Esperando você tirar a roupa.

Só um mamilo pra salvar essa noite.

Só um.

6.9.06

Ex gato lógico

Doutor,

eu estava caindo pelas tabelas de sono. Noites mal dormidas sem razão aparente, ou cheias de razão na mente, mas desordenadas o suficiente para a insônia se deleitar. E eu fritar nos lençóis. Foda. Cama fria, noite gelada, pés úmidos, saco embutido. Nada, nada. Eu, acordado. Quando consegui fechar os olhos o despertador me avisou que já era tarde. Acorda, cretino, que o trabalho te espera. Tomar no cu.

Dureza tomar banho no frio. E é na hora de acordar o sono vem. Nem o choque da água pelando me despertou. Quase dormi no chuveiro, de pé e com o sabonete pendendo nos dedos frouxos. Meu pau se escondeu na mata pentelhal. Se falasse com certeza diria que hoje não sairia dali. Nem a pau. Pica esperta. Expulsei-a de seu abrigo e sacudi-a até a ereção. Depois deixei ela quieta, dura e pulsante, à espera de uma punheta. Se eu também tinha acordado sem objetivo, não estava mais sozinho. Analise isso, se puder.

Trânsito moroso. Vim por instinto. Cheguei até minha mesa e liguei o computador. Tentei ordenar as idéias até o dia anterior. Confirmei que não tinha nada pra fazer. Nunca tinha. Mas já previ o desastre. A mente desocupada é o jardim de Morfeu. O Diabo já determinou usucapião, mas o homem-da-areia vive declarando terra improdutiva e invade. Briga chata. Fiquem os dois, de braço dados que nem dois caubóis viados. Mas não me encham o saco.

Navego pelas páginas habituais, até não ter mais nada de novo para ler. Invento algum interesse, abro várias outras páginas. E vejo as letras embaralharem e fenecerem no limbo do meu sistema límbico. Não me venha com parassimpatias. Preciso dormir, não trocadilhar. Trocadilho é o humor mais rasteiro e egoísta que existe. Só ri quem conta. É o Chevette '76 do humor.

Depois do almoço piorou. Arroz, tutu, calabresa, ovo e bisteca. Só faltou a caipirinha. Meu estômago resmungou a sesta. Meu cérebro fechou para balanço temporário. Decidi que não era hora para desmaiar no teclado então fui ao banheiro. Me tranquei numa cabine, calei a Deca Boca-de-Caçapa e fiquei uns 5 minutos tentando achar uma posição minimamente confortável em meio aos sons viscerais e gravitacionais de meus vizinhos. Escatologia é uma aula de física. A molecada aprenderia muito mais se os exercícios usassem a defecação como exemplo prático. Merda por merda... Uma sinfonia de onomatopéias. Orquestra Cacofônica do Estado de Piriri, a única que não tem Maestro, tem Maelstrom (procura no Google). Tchibuns e plopes dos toroços, chis de xixis, traques variados de cus idem, desde os assovios apertados até os beligerantes ra-ta-tás, blams e plects de portas e tampas, e o complexa digestão esgotal das privadas após apertar o botão de descarga. Uma canção de ninar de merda, um lullabie fecal.

Dormi.

Acordei meia hora depois, com as costas doendo e as pernas formigando. Fingi uma descarga, limpei minhas mãos limpas e saí mancando até minha mesa. A cara inchada e os cabelos desgrenhados. Alguém fez um comentário sem graça. Rosnei uma resposta que não saberia dar. Sentei na minha mesa e percebi que a meia hora de desaparecimento não fez a menor diferença. Ninguém notou minha ausência. Nada mudou. Apenas um lapso temporal, uma volta de 180º sem mudança de sentido ou de destino.

Decidi escrever para você.

Triste isso, não?

20.8.06

Arcanos Arcaicos

Ela fechou os olhos e virou a face transtornada. As mãos seguravam a mesa como se todo seu corpo dependesse daquele apoio para não desabar no chão. Uma lágrima mergulhou na face suada.

- Olha para mim - eu disse, inicialmente com calma. - Olha, porra!

Ela obedeceu. Ao menos em parte. Não olhou para meu rosto, mas para a faca em minha mão. Tramontina. Boa para destrinchar carne.

- Por favor...

- Eu já te disse. Cinqüenta por cento de chance.

- Eu...

- Fala!

--

Doutor,

você sabe que eu sou um cético amargo por definição. Não engulo nenhum tipo de bobagem metafísica que vez ou outra tentam empurrar por minha garganta. Regurgito cinismo junto com bílis e miojo meio digerido. Prefiro morrer na ignorância a inventar algum tipo de solução mística profilática. Não quero ser enganado. Não gosto de ser manipulado.

Então por que eu entrei lá?

A placa gritava em minha retina: "Tarô através da vidência". Pleonasmo, já que a primeira depende da última para funcionar. De outro modo seria apenas... acaso. E místicos adoram o mantra de que nada acontece por acaso. Mas divago. O lance é que eu entrei. Uma casa simples. Pobre sem ser miserável. Decoração que faria um camelô se envergonhar. Muito tule roxo. Incenso. Estatuetas de gesso de diferentes divindades, de diferentes religiões. Símbolos zen budistas misturados a outros de Feng Shui. Um ideograma sânscrito do Om balançava como um penduricalho em um daqueles irritantes sinetes de vento. E ela, que merece um parágrafo curto, mas só dela:

Cabelos negros encaracolados escorrendo pelas costas, empapados de creme para pentear. Um lenço puído cobria o frizz no topo. Olhos cansados e muito maquiados. Unhas vermelhas compridas. Lábio leporino. Roupa pseudo-gótica de brechó.

Me ofereceu uma cadeira. Eu aceitei.

- E aí, o que vai ser? - perguntou ela, enquanto acendia um cigarro sem pedir permissão. De algum modo conseguiu embaralhar as cartas amarrotadas, mesmo com aquelas unhas nojentas atrapalhando. Eu previa uma artrite em suas falanges, e não era vidente. Ela era. Não respondi à sua pergunta. - Olha - continuou - Eu preciso ter alguma informação. Amor, trabalho... O que vai ser?

Decidi testar sua competência. Baixei os olhos, numa fingida submissão. Nunca quis tanto em minha vida conseguir forçar o choro. Não precisei. Ela engoliu.

- Está tudo bem. Você pode confiar em mim...

Vaca, vaca, pensei. Como confiar em uma piranha vidente com aquelas unhas? Ela ia ter que se esforçar mais do que aquilo.

- Olha - disse ela, num tom quase maternal. Quase. - Eu sei que pode parecer duro, sem solução, mas eu posso te ajudar. Mas preciso que você me dê uma força, senão não tem jeito.

- Não.

- E por que não?

- Porque videntes não deviam fazer perguntas. São pagos para prover respostas.

Ela finalmente entendeu. Com certeza eu não era o primeiro chato cético que ela precisou lidar. Abriu um sorriso desafiador e colocou o baralho à minha frente na mesa.

- Corta.

Obedeci. Ela pegou de volta as cartas e as espalhou num padrão bizarro na mesa. A Roda da Fortuna. O Louco. O Diabo. O Sol. O Julgamento. E, é claro, a Morte.

- Olha só! - disse ela, fingindo surpresa. - Apenas arcanos maiores!

Abri um sorriso. Ela começou sua leitura.

- O Diabo é seu passado. São as correntes que o oprimem, a sua prisão. A Roda da Fortuna é o seu presente. É onde você está agora, num momento de transição. Em seguida virá o Julgamento. Seu futuro dependerá da decisão que você tomar agora. Vai ser a inconstância do Louco? Ou a estabilidade do Sol?

Olhei para as cartas.

- E a Morte?

- Simboliza a transição. Não é uma carta ruim como parece. Pelo contrário, significa que há uma solução para sua aflição, e que ela depende de você.

Mirei as cartas espalhadas na mesa sem falar nada. Ela aguardou pacientemente. Acendeu outro cigarro na bituca do primeiro. Prevejo um efizema pulmonar. Estou ficando bom nisso.

- Você não respondeu nada - eu disse, finalmente.

- Você não perguntou nada - retrucou ela, petulante.

Estendi a mão e peguei a carta do Louco. Carta feia, desenho tosco. Não gostei do que vi. Mas também não gosto de me olhar no espelho.

- Esta é sua decisão? - perguntou ela, interrompendo minha análise.

- É - respondi. - Acho que este sou eu - peguei a carta da Morte. - E esta é sua.

Ela riu, desapontada.

- A consulta acabou. Por favor, retire-se.

Saquei então a faca que estava no bolso de minha jaqueta. Finquei a ponta da lâmina bem no meio da carta do Louco, pregando ambos no tampo da mesa. Pelo salto que ela deu, parecia que tinha acertado seu coração. Aposto que ela não tinha previsto aquilo.

- Eu não preciso fazer nenhuma pergunta, mas você é obrigada a me dar uma resposta. E a resposta que eu quero é simples. Um mero sim ou não.

- Eu, eu...

- Sim ou não. Cinqüenta por cento de chance. Se for a resposta certa, você vive. A errada, vou cortar seu estômago. E eu vou te ver sangrar aos poucos até... - peguei a carta na mesa - a Morte.

Ela fechou os olhos e virou a face transtornada. As mãos seguravam a mesa como se todo seu corpo dependesse daquele apoio para não desabar no chão. Uma lágrima mergulhou na face suada.

- Olha para mim - eu disse, inicialmente com calma. - Olha, porra!

Ela obedeceu. Ao menos em parte. Não olhou para meu rosto, mas para a faca em minha mão. Tramontina. Boa para destrinchar carne.

- Por favor...

- Eu já te disse. Cinqüenta por cento de chance.

- Eu...

- Fala!

Ela pensou por um instante. Fungou e engoliu catarro. A maquiagem escorria. Olhou para mim, me odiando. Gostei daquele olhar. Coragem.

- Sim.

Relaxei os ombros. Dei a volta na mesa e me abaixei ao seu lado. A faca pendia indolente em minha mão. Se quisesse, seria fácil me desarmar, mas ela não arriscou. Previu algo? Sentiu algo? Como ter certeza? Ah, a dúvida. Ah, a loteria da vida! Ela não era imune à isso?

- Meus parabéns - eu disse, apertando levemente seu ombro. - Era o que eu queria ouvir. Mas vou levar isso comigo.

Mostrei a carta da Morte. A carta que eu disse ser dela. Torço para que entenda a metáfora.

Levantei-me, paguei a sessão e saí do "consultório".

Qual era a pergunta, doutor?

Tem certeza que quer saber?

31.7.06

Você tem fome de que?

Doutor,

os grilos tritrilam, o que é estranho, pois estou no escritório. Devem ser ecos do ranger de meus neurônios semi-atrofiados tentando se comunicar, apesar da comparação ser exagerada. Nada disso, aliás, vem ao caso, são apenas delírios de uma cabeça insone.

Não. Minto. Estou com sono, é isso. Só que não quero dormir. Quero aproveitar esse torpor para criar algo que preste. Mentira. Desculpe, imaginei que neste ponto de nosso relacionamento eu já conseguisse ser sincero com mais freqüência, mas sou um mentiroso patológico e incurável. O senhor me conhece, então não vou dourar a pílula. Aliás, chega de pílulas. Chega de remédios e de concatenar idéias desconexas. É o sono. São as pílulas. Sou eu. Ponto. Próxima linha. Travessão.

Sei que desapareci. Não, não vou explicar. Porque não quero, porra! Porque quero que se foda todo e qualquer tipo de explicação. Cansei de me explicar. Cansei de procurar sentido em qualquer porra que me aparece na frente.

Sabe quando você senta num bar e descobre que tem alguém olhando para você? Sabe aquele exato momento em que sua cabeça se enche de possibilidades, de alternativas, de dúvidas por vezes irrespondíveis, a não ser que você tome alguma atitude que desencadeie a avalanche iminente? Pois então. Minha reação a isso é a simples estagnação. Não se mexe que a coisa não desaba na tua cabeça. Chafurdo na lama de minha insegurança, aderno em minha autocomiseração. E perco a foda. Morro de fome ao invés de soterrado. Pensar demais atrapalha.

Hoje quero mais é ficar à deriva. Deixar que as correntes me carreguem ao invés de me prenderem. Poético, não? Pois é, saiu sem pensar. Estou numa fase metafórica. Não ligue para isso.

Claro que eu tenho problemas! Claro que eles vão bater na minha porta como uma horda de Testemunhas de Jeová numa manhã de domingo. Mas e daí? Quando chegarem me encontrarão de pau duro. Receberão uma reação espontânea ao invés de uma cara de tacho. E esta reação pode variar de um beijo a uma carnificina. Viva a Loteria. Blim-blom.

A geladeira está quase vazia. Tem um pote de margarina sintetizando penicilina e um yakult vencido cheio de lactobacilos mortos. Minha úlcera geme, faminta. Aquilo não serve. A cabeça do meu pau está dolorida. Meus olhos ardem, minhas costas estalam num arpejo de um piano desafinado. Escrevo.

Escrevo.

Escrevo, e o que sai é um reflexo de meu egoísmo.

Olha pra mim.

Olha.

26.6.06

Num piscar de olhos

Miro o teto. Branco, liso, sem textura nenhuma. Um quadro branco, uma tela implorando pinceladas de tinta. O lustre é vagabundo, uma pequena cúpula de vidro jateado recheada de insetos mortos, um câncer maculando a tela. Há um tique-taque constante, hipnótico. Não há cheiros. Insípido. Inodoro. Incolor. Me afogo lentamente neste ambiente inócuo.

- E então? - você pergunta.

Não respondo. Mas sei que a resposta está a um piscar de olhos. Ou vários.

Blink

Haverá sangue em minhas mãos, e eu saberei que o sangue não será meu. O meu correrá rápido por minhas veias, incentivado pela adrenalina. Sentirei-me bem.

Blink

- Eu tô a fim. Vamos? - ela perguntou.

- Sei lá - me devencilhei.

- Você é quem sabe.

- Eu não sei porra nenhuma.

- Sabe que você fica lindo desse jeito?

- Que jeito?

- Esse. Dá vontade de te dar uma mordida.

- Não ouse.

Blink

Estarei na cozinha dela. Abrirei sua geladeira e de lá retirarei uma garrafa de Coca com pouco gás. Beberei no gargalo e forçarei um arroto, que sairá engasgado pela minha garganta. Estarei engarrafado. Preso. Meu estômago gemerá pela movimentação involuntária de gases e fluidos corporais. Sentirei-me uma bolha, uma granada sem pino prestes a explodir caso não faça alguma coisa. Sobre a mesa da cozinha haverá um suporte de madeira com uma faca.

Blink

Acendi mais um cigarro, não por vontade, mas por despeito. Sempre adorei ver a cara de nojo dos corredores na pista de cooper ao me verem sentado num aparelho de ginástica fumando. Eles passam, se indignam e continuam, temerosos de entrarem em conflito com a figura ameaçadoramente petulante que eu sou. Tive vontade de abaixar as calças e me deitar ao sol, só jiboiando, mas não o fiz. Devia ter feito, pois em seguida ela chegou. Sorria.

Blink

Minha respiração estará ofegante após o ato. Jogarei meu corpo ao seu lado na cama, ainda duro, ainda rígido, mas exaurido. Puxarei a camisinha de meu pau, darei um nó e a atirarei displicentemente ao lado da cama. Ela aconchegará sua cabeça em meu ombro e delicadamante fará um cafuné nos pêlos do meu peito. Seu hálito lamberá em meu ouvido elogios e gemidos. Minha boca ficará seca. Não estarei bem.

Blink

Eu tentava desesperadamente me recordar de seu rosto antes que ela chegasse. Me sentia um idiota. E se ela chegasse e eu não a reconhecesse? Decidi fitar o café obsessivamente. Desse modo transferia a ela a responsabilidade da aproximação. Mas mesmo assim levantei a cabeça quando a porta da lanchonete abriu, e reconheci-a imediatamente. Meu estômago se revirou, e por pouco não vomitei. Ela sorriu maravilhosamente quando me viu. Devia gostar de homens verdes.

Blink

Encontrarei-a nua na cama, as pernas escancaradas exibindo sua vulva recém violada, os peitos mirando o teto. Em seus lábios ainda melados por minha saliva e sucos penianos estará um cigarro. Ela puxará o ar e a brasa brilhará. Estará sorrindo. Não pára de sorrir nunca. Nem verá que estarei com uma faca na mão antes que eu a enfie em suas entranhas. O sorriso sumirá. Peidarei. Arrotarei. Sorrirei.

Blink

- Me dá um cigarro? - ela pediu. Estiquei o maço. Puxou um, acendeu com meu isqueiro e me devolveu. Em seguida sentou-se do meu lado. - 'Brigado.

- De nada.

- Por que você faz isso?

- Hum?

- Vem aqui toda semana só para fumar?

- O parque é público. E eu sou um escroto.

- Gosta de incomodar os outros?

- Não. Gosto de me incomodar. De sentir raiva.

- Está com raiva de mim?

- Sim.

Ela se calou por um instante.

- E você? - perguntei. - Qual a sua desculpa para estar aqui?

- Venho procurar pessoas interessantes.

- Veio ao lugar errado. Devia ter ido a um bar. Não tem ninguém interessante em parques.

- Tem você.

- Pois então...

Ela sorriu.

- Assim você vai acabar me matando de rir!

Blink

O teto continua branco. As matizes que eu utilizo não são indeléveis. A maioria das cores desaparece se você parar de pensar nelas. O tique-taque continua, e eu sei que você espera a resposta. Mesmo assim aguardo paciente até você perguntar de novo.

- Zebedeu?

- Hum?

- Me diga.

- Dizer o que?

- Por que você não vai encontrá-la essa noite?

- Porque não.

- Isso não é resposta.

Verdade.

- Porque tenho medo, Doutor. Só por isso.

Entendeu agora?

20.6.06

Barfly

Doutor,

ontem eu saí. Fui dar uma volta, espairecer. Encher a cara sem nenhum motivo além do habitual. Entrei num bar metido a pub. Legal até. Passei algum tempo imaginando a cara do decorador. Podia ser um leprenchaunt viado ou uma bicha irlandesa, se é que existe tal distinção. Mas com certeza não era ruivo. Não sei porque.

Gosto das segunda-feiras. É o dia do baque, da realidade, da água fria escorrendo pela nuca. As pessoas não costumam sair de segunda, e isso me agrada. Não gosto de pessoas. Gosto de gente. E gente como a gente (não você!) só sai do casulo na segunda. O resto da semana é das pessoas.

O barman tentou puxar assunto enquanto tirava um pint de fine ale. Dois dedos de espuma milimetricamente medidas por um risco estampado no copo. Tirada regulamentar, profissa. Aceitei a cerveja mas recusei o papo. Não é porque sou o único cliente que tenho que ser simpático. Vai conversar com a pia e me deixa em paz!

Na televisão passava o VT de um jogo da copa. Não tem como escapar. Quando não é ao vivo, é VT. E quando não é VT, é um bando de fanáticos endinheirados falando a respeito. Mecenas de gladiadores pasteurizados. Sonham com a bola que lhes falta.

Ela entrou. Feia, muito feia. Feia demais até para mim. Não inspiraria pensamentos eróticos nem em um presidiário. Entrou, flanou pelo ambiente como um peido num banheiro público, e sentou perto de mim no balcão. Deixou uma banqueta entre nós, como último bastião de sua pretensa virtude e de meu bom gosto. A cerveja desceu mais amarga que o habitual.

- Vamos jogar? - eu disse. Ela se acendeu como se tivessem lhe colocado um reator no rabo.

- Jogar?

- É, jogar. Tá a fim?

- Depende do jogo...

Leu a cartilha, mocréia? Se fazendo de difícil para mim? Não faz isso. Não pega bem. Especialmente numa segunda.

- Chama-se "Sedução".

- Não conheço.

- É claro que não...

- Você que inventou?

- Eu? De jeito nenhum. Nem sei jogar direito...

- E como é?

Bebi a cerveja até o fim. Ela aproveitou e derrubou o bastião. Sentou do meu lado.

- Começou errado.

- Já estamos jogando?

- Desde que você entrou.

Deu para ouvir as fichas tilintando em seu cérebro enquanto caíam. Acendeu um cigarro. Filei um.

- Tem fogo? - ela me perguntou, piscando o olho muito maquiado.

- Pára com isso! Tá estragando o jogo!

- Mas eu nem sei as regras!

- É simples: se um ganha, ambos ganham. Se perde...

- Ah.

- O lance não é sexo. O lance não é ficarmos nos esfregando em um canto qualquer. O lance é seduzir. Mutuamente. Você não me seduz. É feia, atirada e vulgar. Se veste mal. Provavelmente é uma encalhada insuportável. E duvido que tenha mais do que meia dúzia de neurônios plenamente funcionais. Mas isso é parte do jogo. Você precisa me convencer que pode valer a pena.

- Você me acha feia?

- E burra. Sim, acho. Mas isso pode mudar. É por isso que estamos jogando. Convença-me do contrário.

Ela pensou por um instante. Dava para ouvir os relês chaveando em seu cérebro. O jukebox começou a tocar U2. Pela décima segunda vez desde que eu havia sentado no balcão.

- Por que? - perguntou ela, finalmente.

- Hum?

- Por que eu tenho que te seduzir? Por que você não me seduz?

- Eu já estou fazendo isso.

- Já?

- Já.

- Me chamando de feia e burra?

- Você não foi embora indignada, foi?

O estalo desta vez foi tão forte que acho que vi seu olho esquerdo dar uma piscada involuntária.

- Não... - concedeu ela, subitamente consciente da própria mediocridade.

- Não me entenda mal. Não sou nada melhor que você. Aliás, duvido que eu seja minimamente digno de sua presença. Sou um merda, um ninguém que se acha grande coisa. Me desculpe.

- Quié isso, não fala assim. Você é até bonitinho...

- Viu?

- Hã?

- Viu como funciona? É assim que você tem que jogar. Ataquei em seu ponto fraco. Sua autopiedade. Você, por um instante, se viu em mim, e isso gerou empatia. Virei um reflexo de sua solidão, e isso te atraiu que nem uma mosca para um balde de merda. Isso é sedução.

- Não, isso é pena.

- Pena o meu caralho. Se eu começasse a chorar em meia hora estaria com a cabeça enterrada em sua xoxotona.

- Você é um escroto!

- E mesmo assim você não foi embora. Vamos, estamos perdendo o jogo. Você ainda não me seduziu.

- Você também não está ajudando nada...

- Claro que não. Eu sou a vítima, estou na defensiva. Você que deu o primeiro passo. Já te seduzi antes de você sentar. Seja por falta de opção ou desespero, você viu em mim uma chance de não passar mais uma noite sozinha, chorando abraçada a um gato obeso. É o meu trunfo. E você ainda não o roubou.

- O que você quer que eu diga?

- Tudo menos isso.

- Isso o quê?

- Isso.

- Você é maluco!

- E você é patética.

Primeira lágrima. Ponto pra mim.

- Ô, cara, pega leve.

- Fica na tua, Johnnie Walker.

- Meu nome é Fulgêncio.

- Ô nomezinho feio da porra, hein? Dá mais uma breja.

- Baixa tua bola, aí.

Apesar da ameaça, me deu a cerveja. A feia ainda chorava, mas tentava disfarçar esfregando as bochechas. A maquiagem desfazia-se a cada passada. Eram lágrimas ácidas. Levantei e me aproximei dela. Olhei-a bem nos olhos. O fluxo diminuiu, mas o estrago já estava feito. Parecia um palhaço derretido. Ela me olhou também, meio assustada, meio implorando piedade. Tomei sua mão. Ela apertou a minha. Puxei-a mais para perto e lambi seu rosto. Sorvi lágrimas, maquiagem e tristeza. Ela não se afastou. Ao invés disso fechou os olhos e curtiu o gesto.

- Ganhou - eu disse em seu ouvido.

- Ganhei?

- Arrã.

- Vamos para minha casa?

- Não.

- Não? Por que?

- Porque o jogo acabou.

- Mas...

Soltei-a e fui embora. Paguei quinze paus pelos dois chopps, mas nem me importei. A noite tinha valido cada centavo.

Fazia tempo que eu não dormia tão bem.

19.6.06

Comenta ISSO, filho da puta!

Doutor,

o que move a criação? O que nos leva para a frente de um computador (tela, caderno, monte de argila) e nos faz querer transformar a tela em branco (ou a massa disforme) em algo a ser lido (visto, apreciado, criticado)?

Será uma urgência egomaníaca descontrolada, uma necessidade irrefreada por um espelho de Narciso? Queremos ser recebidos com latidos delirantes de uma cachorro estúpido que nos amará mesmo que o desprezemos?

É isso que leitores (admiradores, críticos) são. Uma matilha desenfreada de cachorros excessivamente carentes, que enxergam em seus donos um reflexo aperfeiçoado de si mesmo. Uma idolatria exacerbada, uma covardia inerentemente amaldiçoada em sua grandeza frente a nossa pequenez, apesar dessa última constatação não significar absolutamente nada, e eu apenas tê-la escrito para exercitar um vocabulário rebuscado. Mesmo assim pode ser citada como referência ou constatação de minha genialidade pseudo-parnasiana. Ou não. Voltemos ao tópico.

Por que buscamos ídolos, heróis ou modelos? Para que nos interessa saber com que papel higiênico eles limpam a bunda? O que nos motiva a gozar com seus paus e bocetas? O que faz deles melhores que nós? E até que ponto o que fazemos é importante para alguém? Digo REALMENTE importante?

Há quem diga que somos (são) endeusados por conta da divinização da criação. Uma pessoa comum, nascida de um pecado e parida com sangue e excreções, que consegue, num momento de inspiração (divina? metafísica? espasmódica?) criar algo a partir do nada que será digerido por outrem (!), e em seguida este digestor achará que tem o direito de emitir uma opinião a este respeito, mesmo que esta opinião simplesmente não acrescente ou deturpe absolutamente nada. Como se pedíssemos por isso!

E não pedimos? É claro que pedimos! Senão por que caralho produziríamos tal coisa, tal criação, tal qualquer-porra-que-se-diga-arte? Somos súcubos de atenção. Somos tão cachorros carentes quanto eles. Queremos ser chupados em nossas bolas cabeludas quando fazemos algum truque novo. Queremos ser cuspidos em nossas caras de pau quando fazemos algo horrendo, fedido. Falem mal, mas falem de mim! Não me ignorem, cabada de lambedores de cu! Amo vocês, mesmo odiando o que vocês dizem. Odeio vocês até a última geração, mas sou voltairiano convicto, e dou minha vida para que vocês tenham o direito de falar. Até merda. Aliás, se eu escrevo merda, que direito tenho em querer coisa diferente. Caguem em minha cabeça, cambada de putos!

Às vezes acho que só você, doutor, realmente me lê com um motivo sincero. Você me lê por obrigação, por ser parte de sua profissão. Caralho, você GANHA para me ler. O resto não. O resto só espera que eu, em um momento qualquer, destile algum comentário ou pensamento que ligará algum sentimento latente em suas cabeças de ampola. São órfãos cerebrais, parasitas neuróticos buscando eternamente massas cinzentas alheias para sugar. Querem que eu descreva minha realidade, ou para se sentirem superiores, ou para não se sentirem únicos, ou para simplesmente dar risada da escatologia alheia.

Pois então, chupem minha pica! Com gosto.

Mas depois me contem se foi bom.

Doutor, tarja preta significa remédio com vergonha da própria nudez?

Ou é algo simplesmente censurável?

Pensa nisso.

18.5.06

Zebedianas

Exercício de Metalinguagem ou Adulação Egomaníaca? Deixarei a História julgar, apesar de eu mesmo tender para a última. O certo é que é tempo de rebobinar o cérebro, separar o que vale neste vale raso que é este espaço, quiçá minha vida. O certo é que vez ou outra eu olho para trás. E se lá não tem um negão tatuado chamado Adamastor gemendo e suando, quer dizer que a coisa ainda está em seu trilho. Ou não.


Não gosto do big brother. É uma maneira institucionalizada de voyerismo, o que faz com que perca toda a graça.
Zebedeu

É difícil aprofundar mais do que isso. Ainda passo horas assistindo meus vizinhos pela janela, e nenhum deles recebeu convite para posar nu (apesar da mulatinha do segundo andar merecer). A vida está se desglamourizando por conta do excesso de reality shows. Moro em São Paulo. Quando quero realidade tiro a cabeça para fora da janela. Paro quando uma bala perdida encontrar minha testa.


Foda-se o câncer! Deveriam inventar uma cura pra gripe.
Zebedeu

Chamem-me de insensível, de escroto, mas se tem uma coisa que me irrita é gripe. Uma doença que te inutiliza mas que não mata. Um vírus bundão, uma falsa promessa. Não deveria existir. Covarde!


Academias são templos do narcisismo exacerbado.
Zebedeu

Nada tira da minha cabeça que, se pudessem, esses ratos de academia fariam sexo consigo próprios. E não estou falando de punheta! E duvido que alguém consiga falar "narcisismo exacerbado" três vezes bem rápido. E com uma paçoca Amor na boca.


Todo mundo te fode todo dia, mas no Natal eles lembram de comprar um lubrificante.
Zebedeu

A hipocrisia dos dias de festa é a pior coisa que existe. De um dia para outro todo mundo vira santo, vira bonzinho, deseja o melhor para mamãe ninfomaníaca, pro papai bichona, para o caralho de Jesus ou a porra da humanindade. E no dia seguinte chuta uma velha na rua para que ela não atrapalhe sua pressa, cospe asneiras pseudo-intelectualóides para meninos de rua que não estão interessados em lição de moral e tomam cafés com o mindinho em riste. Cambada de paus no cu.


Quando eu crescer quero ser um tsunami.
Zebedeu

Existe coisa mais linda que uma força descontrolada da natureza assassina? É algo que, quando acontece, fica todo mundo com cara de cu. Não tem quem culpar. Sou contra aquele pensamento de mea culpa, de consternação muda, de que é o planeta de vingando de tudo o que fizemos com ele. Porra nenhuma! O dia que as pedras quiserem se vingar, todo mundo vai se lembrar de seus próprios pecados. Até lá...


Felicidade é patrimônio. E não tem seguro.
Zebedeu

Um dia vou escrever um livro de auto ajuda. Só para ajudar no controle de natalidade e aumentar o índice de suicídios. A frase acima, fora do contexto, quase me transforma em um Lair Ribeiro. E qual o contexto? Bem, digamos que no mesmo parágrafo havia outra frase interessante: "Pobre não nasceu para a felicidade".


Mulher quando sorri é que nem louva-a-deus depois de trepar.
Zebedeu

Existe coisa mais nefasta que mulher? Eu, sinceramente, não conheço.


Sexo é moeda de troca.
Zebedeu

Misógino é teu pai!


O amor nada mais é do que um cu arreganhado em forma de um sorriso cagado. Ou seja, um buraco cheio de merda travestido de felicidade.
Zebedeu

Essa é a minha favorita. Gosto da construção da frase, da sonoridade, da poesia escatológica. Além do fato de ainda considerar como uma verdade absoluta. Não tem jeito, nós, homens, somos as vítimas desse jogo escroto e inescrupuloso chamado "Amor". As mulheres são como o ACM ou o José Genoíno. Deixam o trouxa achar que manda em Deus e no mundo, mas na verdade quem manda são elas. Titeteiras desgraçadas.


Não gosto da palavra "sonhar". Sonhar é sinônimo de aspirar, que por sua vez também é usada no sentido de puxar o ar. Como inspirar. Inspirar lembra referenciar. E meus sonhos não são referência para nada. São sempre pesadelos.
Zebedeu

Nuossa! Fui longe nessa aí!

Essas citações estavam no primeiro endereço do blog. É, aquele que foi bloqueado aqui na empresa. Esses pensamentos tem dois anos, e de lá pra cá porra nenhuma mudou. Eu continuo eu. O doutor continua aí. Lá fora as balas continuam perdidas, atrás de seu alvo-metade.

E eu aqui, reciclando bobagens.

Preciso arrumar assunto.

17.4.06

Cacófato De Mente

Você?

Eu.

Com todo respeito, mas você não deveria estar aqui...

Do que você está falando?

Você sabe muito bem. Nós não deveríamos nos encontrar. A essência do que somos depende disso. O que isso significa?

Por que precisa significar alguma coisa? Não pode ser alguma coisa irracionalizável, sem explicação?

Sabe que não. Não disfarça que eu te conheço. Vamos, estou esperando.

Isso você sabe fazer bem. Bem, pode explicar duas coisas, dois extremos, não meio. Dissociação ou Associação completa. Talvez tenhamos finalmente nos libertado mutuamente, o que explicaria este encontro. Você finalmente é apenas você, e eu somente eu. Ou então, do outro lado do espectro, tenhamos nos tornado um indivíduo apenas, amalgamado, cinza.

Não gosto desta última.

Nem eu da primeira.

Mesmo assim...

...estamos aqui. E este é um encontro que não ocorreria caso estivéssemos de sã consciência. Existe algo como sã inconsciência?

Está mais para insana consciência, mas não gosto de jogos de palavras, você bem sabe.

E eu, por outro lado, não gosto de você. E isso não ajuda nada. Somos finalmente dois ou somente um? Não gosto disso.

Gostos são relativos. Goste ou não, goze ou não, não interessa. Interessa que estamos aqui. Aqui e prontos. Prontos ou não.

Quem é que não gosta de jogos de palavras?

Saiu. Desculpe.

Não precisa. Aliás, é a primeira vez que o vejo se desculpar com sinceridade.

Como sabe que foi sincero?

Eu te conheço. Eu te criei.


Não, você me libertou. Sua megalomania não diminuiu depois destes anos. Eu já estava por aí antes de você me perceber.

Mesmo assim...

Quem é o verdadeiro Criador? E a verdadeira Criatura?

É uma questão de semântica. Um Criador é uma Criatura com um sufixo diferente. Criador. Cria-dor. Dor do parto?

O que é uma Tura?

Não fuja pela tangente.

Você me conhece...

E você é realmente livre? Será? Ou é um parasita? Somos dois ou um dividindo um espaço de sinapses? Você sobrevive com a ausência do hospedeiro, permanecendo em hibernação até sua próxima encarnação? E eu, vivo sem sua irritante presença? A relação parasitária poderia ter evoluído involuntariamente para uma simbiótica? Quem sou eu agora? Quem é você? Ou eu deveria perguntar "O quê?"

Você está me assustando.

O que não deixa de ser uma prova do que estou dizendo. Amalgamamos? Assimilei sua indiferença, seus vícios? E você adquiriu um pouco de minha humanidade? Ou foi o inverso? Seria você apenas algo latente, adormecido, aguardando para que eu lhe desse forma e conteúdo? Ovo ou galinha?

Você racionaliza demais.

Aí é que está. Resumo da experiência catártica: você está livre. Não preciso mais de você.

Então é assim?

Não do jeito que você está pensando. É uma libertação das boas. Assumo minhas falhas, e ao mesmo tempo libero minha dependência. Sem a necessidade, tudo o que resta é a vontade. Não preciso mais de você. Se eu quero mantê-lo, isso é outra coisa.

Como o gole social do alcóolatra?

Não. Como o mergulho nu do careta. Você está finalmente livre. Sei que não sobreviverá sem mim, mas o oposto é verdadeiro. Na realidade não há libertação. Há aglutinação. Você virou (É? Era? Será?) parte de mim, que posso acessar a qualquer hora, e se quiser. Nunca se precisar. Nunca mais.

Que papo de viado...

É o tipo da resposta que eu sei que sempre vou encontrar com você.

Você me conhece...

11.4.06

Onde está Zebedeu?

"Caro Zebedeu,

estou entrando em contato pois há semanas você não tem comparecido às nossas sessões. Estou seriamente preocupado, pois apesar de todos os avanços, ainda há muito a ser discutido. Você conhece os procedimentos: ou você comparece às sessões, ou serei obrigado a reportar ao juiz, que imediatamente providenciará sua prisão.

Não desejo fazer isso, pois você tem demonstrado progressos, e retirá-lo do convívio da sociedade apenas jogaria no lixo todo o trabalho dos últimos meses. Como psiquiatra eu realmente não gostaria de ver meu trabalho desperdiçado desta maneira, e como amigo não me agrada a idéia de perdermos nossas conversas.

Espero que ao menos você esteja mantendo sua medicação.

Por favor, entre em contato assim que receber este recado.

Sem mais,
Dr. XXXXXXX
CRM XXXXX
"

Saudades, Doutor?

Não te ensinaram na faculdade os perigos da transferência?

Ou isso é um caso inédito de Síndrome de Estocolmo?

Onde estou?

Não sei...

Uma dica:

Adorei o vestido novo de sua esposa.

Aquele mesmo,

que ela usou no seu aniversário de casamento.

Medicação?

Eu tomo, mas só se o doutor parar com o gerundismo.

Difícil, né?

Muito mais,
Z.

20.2.06

Pega!

- Completa.
- Comum?
- Arrã.

O frentista foi encher o tanque de meu carro velho, me deixando sozinho com os fumos nublando meu cérebro. Cheiro de gasolina é bom. Gosto desde pequeno. Ia com meu pai ao posto sempre que podia, só pra ficar fungando aquele cheiro. Perversão de moleque.

Ironicamente, doutor, foi justamente uma coisa cheirosa que atraiu minha atenção. Um daqueles cheirinhos para colocar no carro estava pendurado num display bem ao lado de minha janela, bem ao alcance de minha mão. Tinha a forma de uma turbina de avião, com hélice interna e tudo. Daquelas para pregar na entrada de ar do painel, e que ficava girando com a incidência do vento, espalhando seu aroma enjoativo e nauseabundo de buquê de cemitério na carlinga de minha aeronave sem asas. Não era caro, mas eu tinha certa vergonha de comprar aquilo. Sei lá, parecia futilidade demais. Criancice. A bomba de gasolina bombeava o combustível para meu carro, e o zumbido começou a ressoar em meu cérebro. "Pega!", gritaram meus neurônios. "Pega!", como se aquilo de repente se tornasse algo inestimável, uma urgência descontrolada. "Pega!".

Nunca fui dado à contravenções desse tipo. Minhas poucas lembranças a este respeito são ruins. Meu primeiro roubo foi ainda criança, quando não tinha ainda noção do que estava fazendo, e talvez por essa razão foi o mais fácil. Roubei um brinquedo do consultório de meu pediatra. Roubei, não. Simplesmente peguei, e não larguei mais. Fui pra casa com o brinquedo e a vergonha de meus pais. Aliás, meu pai me obrigou a dar o brinquedo para uma criança carente dois dias depois.

E lá estava eu, diante de um impulso cleptomaníaco inexplicável, dado o valor do objeto de desejo. Um cheirinho em forma de turbina. Brega, brega. Mas eu queria. Nem sabia para quê. Meu carro já tem um fedor incrustrado de carniça que aquela turbina não conseguiria impulsionar para longe. Não, não era algo racional, não era algo explicável. Era uma vontade irracional. "Pega!".

Quando eu tinha dez anos fui com um grupo de amigos ao mercado, com o intuito de roubar doces. Tremi o caminho inteiro, apavorado com a idéia. Tentei, sem muito sucesso, convencer meus comparsas que aquilo podia dar merda. Parei quando começaram a duvidar de minha masculinidade. Aí era pessoal. Não eram mais doces, eram os primeiros hormônios. Ladrão sim. Viado nunca.

Fomos pegos com as camisetas forradas de pacotes de bolacha, chicletes e chocolates. Pegos pela ganância. Se tivéssemos roubado um pacote cada um, conseguríamos sair despercebidos. Mas ao invés disso optamos pr estufar as camisetas com doces que nem em dois dias conseguiríamos comer. O segurança até riu da nossa inocência, mas o humor não foi suficiente para trazer perdão. Nos levou até os fundos do mercado, obrigou-nos a se despir (para ver se não tínhamos nada escondido nas cuecas, explicou) e, não satisfeito, fez pagarmos vinte flexões nus antes de nos mandar para casa.

E o que eu queria com uma turbina cheirosa? Por quê? O sentimento daquela tarde no mercado voltou. Meu estômago revirou, minhas mãos suavam, tive uma ereção dolorida. Hiperventilação. Dava pra sentir os jatos de adrenalina chegando ao meu coração, reverberando em meus tímpanos. A bomba estalou avisando que o tanque estava cheio, quase fazendo eu furar o teto do carro com minha cabeça. O frentista chegou com a chave. Pedi nota fiscal. Ele me olhou torto, mas foi na direção da mesa preencher o canhoto. Aproveitei o momento e surrupiei a maldita turbina, jogando-a no vão do lado de meu banco.

Uma vez me roubaram as palhetas do limpador de pára-brisas. Roubo típico de espírito de porco, pois estava chovendo um bocado. Com a raiva veio a idéia: rouba outra. Uma só, do lado do passageiro de outro carro. Era uma emergência, algo perdoável. Saí na chuva e procurei um carro do mesmo modelo que o meu. Parei do lado de um. Olhei a palheta. Ela me ignorou. Clique, puxa e corre. Fácil. Ninguém ia ver nada, ninguém ia sofrer. Era fácil. Era perfeito. Pomba, nem mesmo um crime poderia ser considerado! Quero dizer, não tecnicamente. Havia um atenuante. "Pega!".

Voltei dirigindo meu carro como uma locomotiva, com a cabeça para fora na chuva, as palhetas ausentes no vidro e um carimbo de "bundão" na testa.

O frentista retornou com a nota. Perguntei o valor, ele disse. Preenchi o cheque, ele pegou. Liguei o carro e disparei na rua, desesperado para sumir dali. Gritei como um alucinado. Alcancei a turbina com a mão e ergui-a como um troféu. Era o fruto de um roubo! Meu primeiro roubo bem sucedido! Eu conseguira! Superara todos os fracassos anteriores! Eu era FODA!

Parei o carro e vomitei no meio fio. O gosto azedo na minha boca estragou meu júbilo. Senti-me mal, sujo, escroto. Eu era um ladrão, um bandido. Minha honestidade tinha sido deflorada por uma turbina cheirosa. Mesmo o fato de eu ter saído incólume não ajudou a dourar a pílula. Contraventor. Ladrãozinho de galinhas. Trombadinha de posto de gasolina. Era isso o que eu queria? Era essa a sensação que eu buscava?

Sem conseguir mais olhar para aquela turbina, joguei-a em cima da poça de vômito. Bati a porta e fui para casa, decepcionado e orgulhoso de mim mesmo. Uma gangorra moral. Não conseguia decidir se tinha feito bem ou mal ao jogar fora a turbina. Por bem ou por mal ela já estava roubada mesmo. Ningém faria um escândalo por causa de um cheirinho roubado. Precisava jogar fora? Eu conseguiria olhar para aquilo de novo?

Foi quando me dei conta: discriminado na nota fiscal estava lá: uma linha, gasolina. Na de baixo, cheirinho.

Eu não tinha roubado nada.

Agora, doutor, fico feliz ou triste?

8.2.06

Quando o Mundo perdeu o senso de humor

José (olhando para o berço): Bem que ele é forte e saudável. Pena que só vá viver 33 anos.
Maria (suspirando): É, mas para um palestino até que não está mal.


Doutor,

o que acontece com o mundo ultimamente? Sabemos que algo está muito errado quando vemos que uma piada infeliz pode se tornar o estopim de uma guerra que vem fermentado há décadas, tornando o que sempre foi encarado pelo Ocidente como algo que arrancava suspiros de "É triste, mas fazer o que?" em um conflito mundial em nome de uma salada cujos ingredientes ainda são pouco claros: petróleo, estratégia, conquista, fé, posse, orgulho, preconceito, etc, tudo misturado e sem nenhum deles se sobressaindo.



Tudo começou com uma charge? Não. Com a seqüência interminável de atentados suicidas? Com a invasão dos israelenses na Palestina? Com a campanha de Maomé pelo Oriente Médio? Pela morte de Jesus? Pela invasão romana? Não. Aliás, se fosse feita uma enquete na região, a resposta absoluta seria um infantilóide "Foi ele quem começou!". Começou exatamente o que ninguém sabe direito. O que todos sabem é que, independente da fé, precisam seguir cegamente a lei do "Olho por olho, dente por dente". O resto é semântica.



A questão é que há muito tempo os humoristas são as vozes da razão em meio à insanidade vigente. São eles os responsáveis, com sua análise crítica, à reflexão a respeito dos acontecimentos. E isso desde antes da humanidade aprender a escrever! É justo crucificar um país por causa de uma charge ofensiva? Até que ponto o respeito à fé é mais importante que o respeito à liberdade de expressão? É nesta "zona cinza" que o problema se instalou, e, confesso, não há resposta fácil.



O problema é mexer no vespeiro. Com todo respeito à comunidade muçulmana, mas as charges podem até ser ofensivas (e realmente o são!), mas olhem para seus próprios umbigos e vejam a propaganda que os mais fanáticos de vocês estão disseminando há décadas. É ofensivo retratar Maomé com uma bomba no turbante, mas não ver uma mãe idolatrar um filho que se explodiu em um mercado, matando duas dúzias de inocentes no processo? Não julgo dogmas ou preceitos baseados em fé, e tampouco acho que os israelenses são santos (muito pelo contrário). O caso é: não é uma manobra muito baixa utilizar o humor como o estopim de uma guerra?



Talvez estejamos chegando ao ponto culminante deste longo conflito. Joguemos no ralo tentativas de acordo e tratados de paz. Já que não tem jeito, que se exploda! Talvez seja até bom. Que nem quando vemos dois moleques se xingando no colégio. Chega uma hora que torra o saco aquele zero-a-zero e a gente quer mais é ver porrada. Resolve de uma vez, cacete!



Guerra Mundial? Que seja. Hecatombe Nuclear? Fazer o que? Genocídio, milhões de mortos, países dizimados, inocentes chacinados, sangue tingindo as ruas e as casas... Por mais que tentemos achar uma solução, cada vez mais caminhamos para o inevitável. Chame-me de apocalíptico se quiser, doutor, mas eu acho que está na hora do bicho pegar. E o maior sinal disso é que o mundo está perdendo seu senso de humor. E sem isso, de que vale continuar lutando contra a maré? Desce a bomba!



Pelo jeito, desta vez a Montanha foi à Maomé. Agora agüenta, Montanha!

30.1.06

Sacrilégio na Sacristia

Padre,

me perdoa, pois pequei. Um bocado. Se eu tivesse tempo narrava tudo, mas o senhor deve ter outras pessoas para ouvir. Aliás, deve ser um saco ser padre, não é? Ficar aí, nessa casinha, ouvindo as barbaridades das pessoas... Pensando bem, você deve ouvir uma penca de coisas interessantes. Safadezas, sacanagens, putarias... Mas, pensando melhor, você ouve e não pode contar pra ninguém, e isso é uma merda... Ops, desculpe.

- Tudo bem. O que você quer me contar?

Ansioso? Deve estar morrendo de curiosidade, né? Eu ficaria. Bom, como o senhor deve ter notado, não sou um freqüentador assíduo desta igreja. Nem esporádico. Desta ou de outras igrejas. Acho que minha última confissão foi quando eu tinha dez anos, e mesmo assim foi obrigado. "Padre, eu colei catota de nariz embaixo da carteira". O que um moleque de dez anos tem pra confessar? Que pecado cabeludo um guri pode ter cometido que mereça essa sabatina? E quem é o senhor para julgar? Teu deus não diz que é das crianças o reino dos céus? Putz, deve ser um inferno lá, cheio de pirralho ranheta gritando. E porque "dos céus"? Tem mais de um céu?

- Seu pecado?

Tá, desculpe. Bom, nem sei por que entrei aqui. Na igreja, quero dizer. Acho que o pecado já começou aí. Tava mascando um chiclete que já tinha perdido o gosto, e pensei em colar a borracha babada em algum lugar. Pecado de moleque. Entrei aqui, desviando de carolas, até a estátua de Jesus do lado do altar. Fiquei um tempo olhando pra cara do infeliz. Por que sempre que fazem uma estátua de Jesus ele está de olhos baixos, como se tivesse acabado de levar uma enrabada de um filisteu? Sei lá, se eu fosse montar uma igreja ia fazer o símbolo máximo um tipo de Conan. Um cara forte, troglodita. E o lema seria: "Pecou? Vai ter que encarar esse aí!". Que nem os deuses gregos. Aliás, os deuses gregos eram muito mais divertidos. Zeus comia todas...

- Olha a blasfêmia, meu filho.

Desculpa. Bom, o lance é que eu não colei o chiclete. Fiquei lá, olhando pra estátua do judeu deprê. Sei lá por que. Aí apareceu uma carola do meu lado, toda sorridente. Falou uns lances que não entendi, sobre amor, piedade e morte por nossos pecados. Papo de carola, o senhor sabe como é. Saquei a velha: dava um caldo. E ela gostou da encarada. Se benzeu e foi até a sacristia. Abriu a porta, espiou dentro, e depois me chamou. Levei um tempo pra sacar que era realmente comigo, mas fui. A sacristia tava vazia, e a velha (que nem era tão velha assim...) trancou a porta assim que eu entrei. Foi meio rápido. Quando vi a saia dela tava arriada, a calçola no tornozelo, e meu pau enfiado no seu rabo. Assim, sem muito pudor. Comi o rabo dela em cima da mesa. Enquanto estava sendo empalada, a velha ficava gritando: "Me fode, meu Jesus! Me enraba, meu Deus! Goza dentro, meu Senhor!". Gozei dentro. Foi forte. Foi bom. A melhor gozada da minha vida. Enchi a velha de porra.

- ...

Mas não terminou aí. Se fosse só isso tava tudo certo. Uma trepadinha sacrílega, coisa leve. Já fiz coisa pior, e nem por isso confessei. O lance foi outro. Assim que acabei, saquei o pau fora daquele cu velho e senti vontade de dar uma surra na carola. Ela subiu a calçola, arrumou a saia e eu enfiei a mão na cara dela. Assim, sem motivo. Só desci o braço, o pau pingando pra fora ainda. Estapeei ela uma, duas, trocentas vezes, até que ela caísse de joelhos no chão. Aí esfreguei meu pau melado na sua cara enrugada, segurando-pelas orelhas. Ela chorou, pediu misericórdia. Isso só me deixou mais louco. Ergui seu corpo e virei-lhe um soco na boca. Daqueles bem dados, sabe? Machucou minhas falanges, mas quebrei uns dois dentes da coroa, que caiu no chão cuspindo sangue. Ela sabia o que ia acontecer, e começou a chorar em pânico. Meu pau ficou tão duro que começou até a doer, mas era uma dor boa, como dor de dente de leite mole. Gozei de novo, escorrendo minha porra no chão. Ela entrou em pânico quando viu isso e começou a se arrastar na direção da porta. Na minha mão tinha uma faca. Com a lâmina eu cortei os tendões de seu tornozelo, rasgando a meia calça no processo. Ela gritou e esperneou, patinando no sangue que escorria no ladrilho. Pulei em cima dela, virei-a para mim e rasguei sua blusa e sutiã, expondo seus peitos murchos. Passei a faca neles, fazendo o sangue escorrer. Ela parou de gritar, e só me olhava com aqueles olhos apavorados. Se mijou toda, a escrota. O cheiro era insuportavelmente forte. Furei seus olhos com a ponta da faca por causa disso. Ela os fechou quando viu a faca se aproximando, então tive que furar por cima das pálpebras. Levantei e deixei-a lá, chorando sangue deitada na poça de mijo. Mexi no armário do canto e encontrei um pouco de soda cáustica. Acho que o senhor usa pra limpar o chão. Joguei em cima dela, que ficou se contorcendo que nem uma minhoca chapada de anfetaminas enquanto o bagulho queimava suas feridas. O sangue dela ainda jorrava. Sujou tudo. O senhor me desculpe a confusão.

- ...

Depois que ela parou de se debater, acho que mais de cansaço que outra coisa, cheguei perto dela. Nesta altura meu pau já estava mole. Termômetro frio, fim da brincadeira. Passei a faca em sua garganta de um só golpe e fiquei assistindo ela gorgolejar até morrer. Limpei a lâmina na sua saia e saí da sacristia. Nem sei por que acabei caindo aqui.

- Arrependimento, talvez?

Hum, não, não foi isso. Acho que mais curiosidade. Queria ver a sua cara quando contasse o que eu fiz. Além disso, que graça tem matar alguém se não posso contar pra ninguém? Não, não me arrependo de ter enrabado a velha na igreja, e nem de ter matado ela de maneira tão divertida. Aliás, isso não é uma confissão. A verdade é que eu não sou católico.

- Tudo bem.

Tudo bem? Como assim?

- Está tudo bem.

Como é? Não vou ter uma penitência? O senhor não vai me condenar a uma eternidade de sofrimento?

- Não. Você não é católico, então não acredita nisso. E eu, na verdade, não sou um padre.

Não? Então quem...

MÃE?!?

--

Putz, que sonho maluco.

Doutor?

Divirta-se.

20.1.06

O Crepúsculo da Bicha

Doutor,

a cena habitual: eu, um bar, uma cerveja. Noite de quinta feira e categoria. Barman bocejando. Caubi Peixoto chorando babaquices no alto falante. Cérebro formigando, saco enchendo. Daí entra em cena uma bichinha. Daquelas, sabe? Camiseta cortada, mãos de tiranossauro, óculos coloridos, cabelinho estranho, magra que nem um somali. Caminhava pisando em ovos com os pezinhos calçando uma sandália cheia de brocados. Bolsinha a tiracolo. Veio até o balcão e estacionou ao meu lado. Pediu um Saint Remy pro barman, que preparou o drinque e o entregou sem mostrar qualquer reação. A bicha deu uma bicada na bebida, sem esquecer de deixar o mindinho ereto enquanto erguia o copo. Suspirou.

- Tô passada! - disse, a lígua sibilando entre os dentes. - Pas-sa-da!

Acho que ela esperou algum comentário meu, mas como não dei trela, continuou:

- Não aguento mais essa vida - chorou. - Acabou tudo, a graça, o brilho, o tesão. Quero morrer!

- Então cala a boca e se mata de uma vez, ô caralho! - resmunguei, me arrependendo em seguida.

- Acabou a graça! - gritou ela, saltitando em seu tamborete. - Fiquei ultrapassada! Dê-modê! Sou um fóssil, uma relíquia, uma pantufa velha e puída esquecida embaixo do futón, uma gravata de piano, uma...

- Uma porra de uma bichola chata! Porra, vai se tratar!

- Sou bicha, sim. Bicha, viado, paneleiro, tresloucada, entrevada e pau no cu! Sou tudo isso, mas não sou mais gay. Não, não sou. Virei uma caricatura, um estereótipo, um cliché de comédia do final do século passado! Sabe por que? Sabe? Hein? Hein?

- Porque ninguém agüenta mais tanta frescura junta?

- É! É isso aí! Gay hoje é fino, classudo, elegante, inteligente, compreensivo, refinado. E eu não, sou só uma bicha velha e descontrolada, louca pra subir na mesa e dançar que nem uma doida, fazer um pití, apalpar a bunda do gostosão da festa, fazer comentários impertinentes e sexistas pra todo mundo. E por isso estou fora de moda! Até cowboy gay é melhor que eu! Olha minhas roupas. Olha! Quem, senão uma bicha louca como eu se vestiria assim? Mas não, hoje a "comunidade gay" só veste GAP, Armani, Gucci... Como eu, essa bicha pobre e segregada vou conseguir dinheiro para esse tipo de coisa? Moro de favor num quarto-sala na Barata Ribeiro, e o pouco que ganho não dá nem pra comida, quanto mais para decoração. No meu tempo bicha levava porrada todo dia, dava o cu pra quem estivesse a fim, era o ó do borogodó. Agora não. Só vemos por aí os homossexuais finos, elegantes, bonitos e bem alimentados. São executivos, empresários, ricos. Deixamos de ser minoria, de ser diferentes, de chocar. Somos moda agora. Porra, a merda do mundo virou gay!

Ouvi a lamúria sem me manifestar, mas aquilo já estava me enchendo o saco.

- Ô Bornay! Pára de chorar agora ou te meto a mão na cara!

- Jura? Jura que faz isso?

- O negócio é o seguinte: esquece cinema, televisão ou revista, tá? Esquece. Agora pensa: quantos gays bonitos, elegantes, educados, refinados e ricos você conhece? Pessoalmente?

- ...

- Taí. Mito. Lavagem cerebral da mídia. Marketing de minorias. É só ir a uma parada gay ou desfile de carnaval e perceber que a realidade é bem diferente. Vocês continuam sendo uma cambada de filhos da puta espalhafatosos, inconvenientes e desagradáveis que só estão no mundo para aporrinhar. Então pára de viadagem e vai pro teu muquifo dar o rabo pra algum pervertido e me deixa em paz, tá legal? Você ainda são uns aliens emplumados, tá certo?

A ficha do viado demorou a cair, mas deu pra notar a hora exata que aconteceu. Os olhos cheios de maquiagem brilharam por trás do óculos, e a boca se abriu num arremedo de sorriso torto. Limpou as lágrimas, se levantou com um salto afeminado e veio correndo em minha direção, a boca já fazendo um bico, pronta para um beijo estalado. Levou um banho de cerveja antes de completar seu intento.

- Ai, meu Deus! - gritou ela, empolgada. - Obrigada! Obrigada, obrigada, obrigada... - e saiu do bar correndo a passos curtinhos.

- Trás outra, Zé.

O barman abriu outra cerveja e colocou em cima do balcão.

- Que foda, hein? - disse ele.

- Pode crer.

- Gostei do jeito que você lidou com ele. Merecia.

- Valeu.

- Sabe, eu largo daqui a meia hora. Que tal se a gente fosse até meu apê? Comprei um home theater novinho, e o box de Will&Grace. A gente podia assistir juntos...

Deixei uma nota em cima do balcão e levantei, sem encostar na cerveja. Ele ainda me olhou com alguma esperança embaixo daquelas sombrancelhas bem aparadas. Me virei para ele antes de sair e mostrei meu dedo do meio.

- Te fresquêia, ô bichona!

12.1.06

Simbiose

Doutor,

quando eu era moleque, com os hormônios fervilhando em minhas bolas, eu arrumei o esquema ideal de conquista. O senhor me conhece. Uma de minhas poucas qualidades com certeza não é a aparência, então eu podia eliminar a estratégia da mera atração espontânea de meu repertório. Além disso era tímido (ainda sou), o que também não ajudava quando era necessário fazer a abordagem. O esquema ideal surgiu mais por acaso do que por planejamento, mas pelo tempo que durou funcionou a contento.

Éramos três amigos. Eu, o Manco (que não era manco, mas que ganhou o apelido após discutir com um bêbado, que o chamou de "Manco das Idéia" (sic)) e o Antenor, o gostosão do bairro, belo como um deus grego, burro feito um cachorro de beira de estrada. A amizade surgiu naturalmente, sem que forçássemos nada, e também naturalmente descobrimos nossas participações no esquema. Antenor era a isca. Manco era o puxador de assunto. Eu era o sidekick, o contra-regra, que ficava nos bastidores garantindo que tudo seria feito a contento. E funcionava, na maioria das vezes.

Antenor sempre atraía todas as mulheres em qualquer evento. Era a isca. Além de ser dono de uma beleza ímpar (chegou a virar modelo), era extremamente carismático, o que ajudava muito a mascarar sua completa e total ignorância dos assuntos mais básicos. Era o burro simpático, que ninguém entende por que gosta, mas que gosta mesmo sem entender. Ainda assim de vez em quando precisávamos interferir, principalmente quando percebíamos que suas asneiras podiam sair do controle e reverter o esquema vencedor. Nas vezes que era impossível evitar algum comentário especialmente grotesco, a Noite de Caça virava Noite de Briga, o que, no fundo, também tinha sua diversão.

Depois que Antenor atraía nossas presas, era hora de Manco atuar. E ele era um mestre no quesito "Tirar assuntos da cartola". Não era feio como eu, mas também não era bonito como o Antenor. Tinha um grande nariz adunco e um ego quase do mesmo tamanho que ele, mas possuía uma lábia invejável. Era mestre em fazer as mulheres se apaixonarem. Conversava a respeito de tudo, e sempre tinha alguma opinião bombástica para dar, mesmo que elaborada de última hora. Seu maior mérito era falar tanto que não dava tempo para suas vítimas pensarem a respeito. A maioria só percebia o esquema no dia seguinte, e aí já era tarde. Além disso Manco era imune ao amor. Tratava as mulheres como patos em sua alça de mira. Deixava-as literalmente de quatro, e saía andando sem pudores, pronto para a próxima.

A minha atuação era mais discreta. Eu ficava no fundo, apenas aguardando os restos caírem da mesa, como uma rêmora presa a uma barriga de tubarão. Nunca fui bonito, nunca tive um bom papo, nunca fui imune ao amor. Eu era o que freqüentemente saía de mãos abanando, o último da fila darwiniana, mas mesmo assim me divertia muito com o esquema. E de vez em quando sobrava alguma coisa interessante para mim, e todas as noites de fracasso eram imediatamente esquecidas. Éramos o Belo Imbecil, o Feio Esperto e eu, a Rêmora Caronista.

Certa vez Antenor atraiu algo incomum para ele: uma mulher linda e inteligente. Entenda, não é um pensamento machista, eu sinceramente acredito na união das duas qualidades no sexo feminino, já tendo testemunhado mais de uma vez acontecer. O lance é que não era comum esse tipo de mulher se interessar pelo Antenor. Normalmente após duas frases elas fugiam para o Manco, ou mesmo para mim (se a noite estava terminando). O lance é que ele ficou com ela, e depois a trouxe de volta para a mesa. Não me recordo seu nome, mas era uma jóia rara. Sem que me desse conta, começamos a conversar. Trocamos idéias, opiniões, impressões. Era uma conversa e uma visão deliciosas. Mesmo assim acabei beijando uma amiga dela. Naquela noite outro esquema foi naturalmente construído, mesmo que eu não tivesse percebido imediatamente. Nos dias seguintes Antenor trazia sua nova "namorada", que trazia alguma amiga para mim, além de, é claro, sua conversa deliciosa. E eu acabava ficando com suas amigas enquanto fantasiava com ela.

Um dia juntei coragem e perguntei por que ela não ficava de uma vez comigo, já que nos dávamos tão bem, e sim com o Antenor, com quem nem ao menos conversava. Sua explicação foi incrivelmente clara e cruel: "Sou muito bonita para ficar com alguém como você. Gosto de conversar com você, mas ninguém compreenderia essa contradição, e isso acabaria nos separando. E gosto demais de você para colocar tudo a perder por causa de sexo".

Compreendi imediatamente o esquema. Toda vez que ela beijava o Antenor, estava me beijando. E toda vez que eu beijava alguma amiga sua, beijava-a de volta. Éramos, no fundo, namorados que eliminaram o empecilho sexual do contexto. Era algo genial, calculista, sem falhas. Chorei naquela noite em minha cama, desconsolado, apaixonado, amargurado, mas na manhã seguinte racionalizei que era o melhor. Continuamos assim, ela com o Idiota, eu com as Imbecis, mas sempre juntos, mesmo sem nos tocarmos fisicamente. O Manco não entendia nada. Era esperto, mas não muito inteligente. Foram semanas mágicas e estranhas, e que estavam fadadas ao fracasso, mas não ao esquecimento, tanto que estou aqui, quinze anos depois, narrando para você.

Depois que nos separamos a amizade com Antenor e Manco também ruiu aos poucos. Antenor arrumou outra namorada, loira, burra e linda como uma pintura de Botticelli, e cometeu o ato primordial: se apaixonou. Perdemos nossa isca. Eu acabei mudando para São Paulo logo depois. Para o Manco foi mais difícil, mas as últimas notícias que tenho dele é que arrumou outro grupo de amigos e continua na luta, sem noção de sua própria idade ou do ridículo. Pelo que sei se diz feliz, mas duvido que realmente seja.

Eu, a Rêmora, virei o que virei. Perdi meus tubarões, e as migalhas são cada vez mais escassas. De vez em quando penso em arrumar mais um Belo Imbecil e um Feio Esperto para me ajudar, mas aí me lembro do Manco e volto para meu casulo. Foi uma época deliciosa, das melhores da minha vida. Escrever as histórias daquela época seria o suficiente para encher uns três livros, mas sinceramente não sei se teria paciência para isso. Nostalgia vem e vai. Veio.

Agora já foi.