12.12.06

A Vida Fora de Mim

Doutor,

foi uma daquelas coisas que batem sem aviso, saca? Sem motivo.

O cenário era comum: viaduto Santa Ifigênia. Eu desviava de transeuntes e camelôs, quando de repente uma clareira se abriu. Como uma nesga de sol num dia frio. Eu eu estava lá, no meio daquele vácuo metropolitano. Larguei minhas coisas e dei um giro. Depois outro. A dobradiça da nuca se estendeu ao máximo e tudo que entrou pela janela de minha íris foram as nuvens e o topo dos prédios orbitando minha visão periférica. Abri os braços e saí de mim.

Ei! Quase me acertou! Cada maluco que a gente encontra! Que é que dá numa pessoa para ficar girando no meio do caminho? Qual era o número do trabalho dele mesmo? Merda, sem sinal! Vou comprar qualquer coisa pra mãe dele. Vaca, nunca me olhou na cara e ainda tenho que comprar presente bom? Vou comprar qualquer merda num camelô e colocar numa embalagem fuleira mesmo. Ela vai reclamar de qualquer jeito, então pra que me preocupar? Cuidado aí, apressadinho!

Sai da frente! Droga, droga droga! Um probleminha de nada! Precisava me chamar? Mas de hoje não passa. Vou lançar uma dúzia de currículos. Não estudei seis anos para receber esse tipo de tratamento. Trabalho sábado, domingo e feriado e ganho o quê? Nem um tapinha nas costas! Promoção, então, só se eu matar meu superior. E pior que aposto que nem assim eles me promoveriam. Cambada de incompetentes! Cuidado com o maluco girando! Olha, esse jogo eu não tenho...

Só mais dez e eu fecho a barraca. Tá foda. Pára de fuçar e compra logo, moleque! Se pedir eu dou desconto, não fica cheio de dedo. Mão de vaca do caralho. Caramba, com mais dez eu faço milão e já garanto pelo menos a ceia. Isso se a bruaca não gastar tudo com bobagem. Ô mulher mais gastadeira! É só eu trazer cem que ela já gastou duzentos! Deve ser por isso que o doidão tá girando aí... Que? O Rapa? Ah, não, agora não. Sai, moleque! Merda, caiu um monte! Merda, merda!

Parece um bando de barata fugindo da luz. Corre pobraiada! Olha lá, eles correm, os pobres pegam o que cai no chão, e em segundos o viaduto está limpimnho. Trabalho bom esse. Nem precisa sacar o berro. É só ligar a sirene uma vez e parece formigueiro em véspera de chuva. Coisa linda de se ver. Adoro ser autoridade. Quem? Aquele louco? Ih, mano, deixa ele girar a vontade. Dá a maior dor de cabeça preencher formulário de pirado. Prefiro prender aquela bundinha ali...

Será que ele merece? Ah, e daí? Não é gasto, é investimento! Chega de roupa apertada e viver de aparência. Ele já me deu umas olhadas no escritório, deve estar a fim. Mas eu tenho que valorizar o passe. Senão ele vai, come, joga fora e eu continuo na mesma. Preciso mostrar pra ele que eu mereço mais do que isso. Tenho que dar um presente bom. Coisa fina. Ai, meu São Crediário, me proteja! Ih, olha o piradão girando ali! Haha, que engraçado! Vou tirar uma foto com o celular! O pessoal do escritório não vai acreditar... Ei! Pega!

Vacilona. Babau. Corre! Ih, os home! Cai pra esquerda, cai pra esquerda! Olha a frente! Ó o cara, meu, girando que nem pião! Cada uma... Desce a escada, vai. Olha a tia! Droga!

Ai, Jesus! O que é isso? Desgramado, pelo menos me ajuda a levantar! Odeio trombadinha! Obrigado, moço. É, a sacola é minha, sim. Muito obrigado, viu? Será que quebrou alguma coisa? Ah, depois eu vejo. Agora estou atrasada. Não, moço, eu tô bem, não se preocupa não. Obrigado mesmo. Quem? Ah, é só alguém feliz. Deve ser, pra ficar girando daquele jeito. Ou é maluco. Não, tá tudo bem mesmo. Brigadão. Tchau. Ufa, foi só um susto. Agora é só pegar o metrô que eu chego em casa e tomo um banhão... Ei, cadê minha carteira?

Putz, só tem bilhete único na carteira da velha! Nem um trocadinho! Cartão só de débito. Carteirinha do INSS. Foto da família. Tanto trabalho pra nada! E se eu pegasse as coisas do pião lá do viaduto? Nem, pela cara o babaca não deve ter nem onde cair vivo. Pô, a velha podia ter uns trocadinhos, né não? Bom, fazer o que? Joga essa merda fora e bola pra frente!

Uma carteira! Não, eu não vou abrir, não. Sei lá, acho invasão de privacidade. Não, nem vou gritar "Quem perdeu uma carteira?" que vai aparecer um monte de espertinho. Não sou tão bobo. Não, não vou ver se tem grana! Não acredito que você pensou nisso! Sou honesto! Trouxa não! Olha o respeito! Baixa a bola você! Não grita! Ai, que vexame! Tá bom, tá bom, desculpa... Olha, eu tô me desculpando! Dane-se essa porcaria de carteira! Quê? Não, não vai girar com o cara não! Eu vou embora, Flô! Juro que nunca mais você vê minha cara! E você, tá olhando o que?

Barraqueiro. Também, com um puta mulherão desses, qualquer um perde as estribeiras. Comigo ela ia ficar pianinho. Nada, não, seu moço! Fica na tua ou te faço amanhecer com a boca cheia de formiga. Cada uma que me aparece! Vou é logo pra casa que a patroa tá esperando. Um dia mato a vaca. Não pára de engravidar! Cacete, é tão difícil se controlar? Não tem mais de onde tirar dinheiro pra sustentar tanto filho! Devia socar aquela barriga toda vez que embuchasse. Porra, ela acha o que, que dinheiro dá em árvore? Daqui a pouco não tem mais semáforo que chegue pra tanta criança. Bom, melhor isso que ficar tantã e sair girando num viaduto...

Volto a mim, junto com uma ânsia terrível. Cambaleio até a beirada do viaduto e quase vomito no Anhangabaú. Alguém tenta me ajudar, mas espanto com um safanão. Tira os olhos de minha carteira, seu puto! Corto sua mão e enfio no seu cu! O estômago remexe, regurgita e reclama coisas ininteligíveis. Arroto. Alguém me chama de porco. Recebe um dedo médio como resposta pouco convicta. Me debruço no parapeito e observo a multidão no Anhangabaú. Bem no meio da praça, numa clareira entre transeuntes e camelôs uma garota rodopia alegremente no mesmo lugar, a cabeça jogada para trás. Observo-a pelo tempo que leva para ela parar de girar e olhar para mim. Me manda um beijo. Disfarço, recolho minhas coisas e vou embora.

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Como esta será provavelmente a última vez que nos falamos este ano, deixo para o Doutor uma mensagem de Paz:

Espero que em 2007 o senhor descanse em paz.