31.10.07

Anos Vazios

Doutor,

Ele é daquele tipo de cara sobre o qual você ouve falar por aí. Do tipo que abandona a família por um motivo qualquer. É triste, mas a verdade é que nenhum dos dois percebeu os sinais. E ele nunca disse uma palavra, pois não poderia deixar para outro dia.

- Leve-me em direção à praia - ele disse. - Enterre-me na areia. Conduza-me sobre a água. E talvez você compreenda.

Tomei o último gole e pedi mais uma dose antes de continuar.

- Sabe, cara, uma vez que a pedra sob a qual você está rastejando for retirada de cima de seus ombros e a nuvem preta sobre você desaparecer, o barulho que você ouvirá será o desmoronar destes anos vazios.

Levou um tempo até ele digerir a informação. Mas o fez. Rapaz esperto.

- Ela não é uma tipo de garota sobre a qual você ouve falar. Ela nunca... nunca desejará outro. E nunca estará sozinha. Ela mostrará a você todos os sinais e lhe contará tudo. E então virará as costas e irá embora.

Eu não tinha mais o que dizer então me calei, deixando-o lá com aquelas dúvidas corrosivas. Não havia nada que eu pudesse fazer para ajudá-lo. Pois eu o compreendia mais do que gostaria de assumir. Mas eventualmente eu virei as costas e fui embora.

Não entendeu, doutor? Tudo bem, não era para você entender mesmo.

Mas eu espero que ela compreenda.

8.10.07

Like a Rolling Stone

Doutor,

sabe quando a gente chega a uma certa idade e certos pensamentos começam a tomar conta de nossas mentes, especialmente nas noites insones?

Tive um surto desses neste final de semana.

De repente me peguei pensando em me estabelecer. Sabe como é, conhecer alguém especial, casar, constituir família, almoço de domingo, supermercado, rotina, visita dos sogros, comprar fralda, limpar cocô, etc. Tive mesmo. Daqueles momentos em que se diz: "Chega de putaria! Vou colocar minha vida nos trilhos!".

Daí fui salvo por um diálogo:

- O que você acha?

(Ela faz bico enquanto pensa. Linda.)

- Minha mãe me disse que quando ela era jovem as garotas tinham dois sonhos: casar com um Beatle e ir pra cama com um Rolling Stone.

- E aí? O que isso tem a ver?

- Que você definitivamente é um Rolling Stone.

Será, doutor?

4.10.07

Meu Segundo Roubo

Doutor,

um amigo meu (ando cheio de amigos ultimamente, né?) me fez uma visita outro dia. Entre cervejas e papos ébrios ele acendeu um cigarro. Estranhei logo de cara seu isqueiro: um daqueles mini-bic padrão, branco, igual a zilhares por aí, mas inteiro enrolado em fita isolante. Tipo coronha de revólver roubado, saca? Perguntei na hora por que ele tinha feito aquilo e sua resposta era de uma lógica irrefutável:

- Pra ninguém querer roubar, oras.

Oras! Que óbvio! Como eu não tinha percebido isso? Se tem uma coisa que sempre desaparece no ar são os isqueiros. Não, não acho que elas sejam sondas alienígenas nem porra nenhuma disso. Nada tira da minha cabeça que se os alienígenas forem implantar sondas será diretamente no nosso rabo. Não pergunte porque. Talvez seja por isso que tenha crises de pânico quando esqueço de colocar cueca...

Já sei, já sei, muita informação irrelevante. Preciso aprender a divagar menos.

Voltando, achei aquele isqueiro "à prova de furtos" quase uma afronta pessoal. Sério. Quem aquele cara achava que era para jogar na minha cara uma solução porca como aquela e se achar o supra sumo da esperteza tabagista? Eu simplesmente TINHA que roubar aquele isqueiro! Nem que fosse apenas para provar que aquele sistema de merda não funcionava.

O doutor bem sabe que nesse assunto eu sou uma completa negação. Tremo, suo, gaguejo, só faço merda. Lembra quando contei aqui mesmo a respeito de meu primeiro roubo? Eu sei que faz tempo e não vou recontar o caso pois... bem, não vem realmente ao caso. Resumindo, eu não tinha roubado absolutamente nada. Apenas achava que sim. Mais um coito interrompido nessa minha vida nas coxas.

Mas eu ia virar o jogo. Ah, se ia!

Esperei até a hora de ele ir embora. Fui maquiavélico. Fui frio, calculista e clichê. Esperei com a paciência ansiosa de um virgem num puteiro. Cheguei a ir ao banheiro dar um barrão de tanta ansiedade. Mas eu sabia que conseguiria. Eu seria o melhor ladrão de mini-bics da História! Uma hora depois ele deu aquela espreguiçada clássica antes de levantar do sofá e foi ao banheiro mijar pra ir embora. Assim que ele fechou a porta estiquei a mão, peguei o isqueiro e enfiei no bolso. Assim, sem mais nem menos, na caruda mesmo. Ele saiu do banheiro, se despediu e foi embora.

(Côro de "Aleluia")

Eu tinha conseguido!

("... aleluia, aleluia, aleluuuia!")

Eu sei, doutor, foi uma coisa tão imbecil, tão cretina que não dá nem pra considerar roubo. Para quem cobra o valor de suas sessões deve ser mesmo. Mas para mim foi a primeira vitória em muito tempo. Foi a queda de um muro na Berlim sináptico de meu cérebro. Acho que até berrei de alegria. Endorfina, endorfina, quer uma breja? Ah, eu tinha conseguido!

Usei o isqueiro a semana toda, respondendo cheio de orgulho quando perguntavam sobre a fita isolante: "Um amigo achou que assim não roubavam. Mas eu ROUBEI!".

Que satisfação, que satisfação!

No final de semana seguinte calhou de eu ir à casa deste mesmo amigo. Planejei tudo pelo caminho, como desmascararia seu estratagema, como esfregaria em sua cara que a cretinice ele tinha bolado de nada tinha adiantado. Pois eu, EU, tinha burlado seu sistema e ROUBADO a porra de seu isqueiro! Ah, tudo que eu queria ver era a cara dele.

Segui à risca o script mental que criei. Entrei, esperei um pouco, acendi um cigarro com o isqueiro e deixei-o sobre o maço, bem à vista do babaca. Ele olhou e não deu a mínima. Como assim? Como assim?!? Ele nem tinha dado pela falta? Apelei.

- Não reconhece o isqueiro?

Ele o olhou sem entender.

- Arrã.

- O que me diz do seu sistema anti-furtos agora? Hein?

Acho que demorou alguns segundos pra ele realmente entender.

- Você acha que roubou o isqueiro?

- Eu ROUBEI o seu isqueiro de merda! Bem debaixo da sua fuça! O que me diz dessa sua BOSTA de sistema anti-furtos agora, hein?

Ele caiu na risada. Eu fiquei mudo. Ele explicou assim que conseguiu recuperar o fôlego.

- Cara, esse isqueiro é seu!

- Hã?

- Quando você foi no banheiro dar um barro meu isqueiro acabou. Não sei por que, mas tirei a fita do meu isqueiro e enrolei no teu. Achei que você tinha percebido!

- ...

Pois é, doutor. Foi isso que aconteceu. Meu segundo roubo TAMBÉM não foi um roubo. Não entendeu? Eu explico:

EU TINHA ROUBADO O MEU PRÓPRIO ISQUEIRO!

Quer coisa mais idiota que essa?

Chega, essa foi minha última tentativa de roubar algo. Não é minha praia, não tem jeito. Não nasci pra isso. Estou condenado a comprar tudo que eu quero, a ser um babaca honesto pelo resto da vida.

Tá, pode parar de rir agora.