20.2.06

Pega!

- Completa.
- Comum?
- Arrã.

O frentista foi encher o tanque de meu carro velho, me deixando sozinho com os fumos nublando meu cérebro. Cheiro de gasolina é bom. Gosto desde pequeno. Ia com meu pai ao posto sempre que podia, só pra ficar fungando aquele cheiro. Perversão de moleque.

Ironicamente, doutor, foi justamente uma coisa cheirosa que atraiu minha atenção. Um daqueles cheirinhos para colocar no carro estava pendurado num display bem ao lado de minha janela, bem ao alcance de minha mão. Tinha a forma de uma turbina de avião, com hélice interna e tudo. Daquelas para pregar na entrada de ar do painel, e que ficava girando com a incidência do vento, espalhando seu aroma enjoativo e nauseabundo de buquê de cemitério na carlinga de minha aeronave sem asas. Não era caro, mas eu tinha certa vergonha de comprar aquilo. Sei lá, parecia futilidade demais. Criancice. A bomba de gasolina bombeava o combustível para meu carro, e o zumbido começou a ressoar em meu cérebro. "Pega!", gritaram meus neurônios. "Pega!", como se aquilo de repente se tornasse algo inestimável, uma urgência descontrolada. "Pega!".

Nunca fui dado à contravenções desse tipo. Minhas poucas lembranças a este respeito são ruins. Meu primeiro roubo foi ainda criança, quando não tinha ainda noção do que estava fazendo, e talvez por essa razão foi o mais fácil. Roubei um brinquedo do consultório de meu pediatra. Roubei, não. Simplesmente peguei, e não larguei mais. Fui pra casa com o brinquedo e a vergonha de meus pais. Aliás, meu pai me obrigou a dar o brinquedo para uma criança carente dois dias depois.

E lá estava eu, diante de um impulso cleptomaníaco inexplicável, dado o valor do objeto de desejo. Um cheirinho em forma de turbina. Brega, brega. Mas eu queria. Nem sabia para quê. Meu carro já tem um fedor incrustrado de carniça que aquela turbina não conseguiria impulsionar para longe. Não, não era algo racional, não era algo explicável. Era uma vontade irracional. "Pega!".

Quando eu tinha dez anos fui com um grupo de amigos ao mercado, com o intuito de roubar doces. Tremi o caminho inteiro, apavorado com a idéia. Tentei, sem muito sucesso, convencer meus comparsas que aquilo podia dar merda. Parei quando começaram a duvidar de minha masculinidade. Aí era pessoal. Não eram mais doces, eram os primeiros hormônios. Ladrão sim. Viado nunca.

Fomos pegos com as camisetas forradas de pacotes de bolacha, chicletes e chocolates. Pegos pela ganância. Se tivéssemos roubado um pacote cada um, conseguríamos sair despercebidos. Mas ao invés disso optamos pr estufar as camisetas com doces que nem em dois dias conseguiríamos comer. O segurança até riu da nossa inocência, mas o humor não foi suficiente para trazer perdão. Nos levou até os fundos do mercado, obrigou-nos a se despir (para ver se não tínhamos nada escondido nas cuecas, explicou) e, não satisfeito, fez pagarmos vinte flexões nus antes de nos mandar para casa.

E o que eu queria com uma turbina cheirosa? Por quê? O sentimento daquela tarde no mercado voltou. Meu estômago revirou, minhas mãos suavam, tive uma ereção dolorida. Hiperventilação. Dava pra sentir os jatos de adrenalina chegando ao meu coração, reverberando em meus tímpanos. A bomba estalou avisando que o tanque estava cheio, quase fazendo eu furar o teto do carro com minha cabeça. O frentista chegou com a chave. Pedi nota fiscal. Ele me olhou torto, mas foi na direção da mesa preencher o canhoto. Aproveitei o momento e surrupiei a maldita turbina, jogando-a no vão do lado de meu banco.

Uma vez me roubaram as palhetas do limpador de pára-brisas. Roubo típico de espírito de porco, pois estava chovendo um bocado. Com a raiva veio a idéia: rouba outra. Uma só, do lado do passageiro de outro carro. Era uma emergência, algo perdoável. Saí na chuva e procurei um carro do mesmo modelo que o meu. Parei do lado de um. Olhei a palheta. Ela me ignorou. Clique, puxa e corre. Fácil. Ninguém ia ver nada, ninguém ia sofrer. Era fácil. Era perfeito. Pomba, nem mesmo um crime poderia ser considerado! Quero dizer, não tecnicamente. Havia um atenuante. "Pega!".

Voltei dirigindo meu carro como uma locomotiva, com a cabeça para fora na chuva, as palhetas ausentes no vidro e um carimbo de "bundão" na testa.

O frentista retornou com a nota. Perguntei o valor, ele disse. Preenchi o cheque, ele pegou. Liguei o carro e disparei na rua, desesperado para sumir dali. Gritei como um alucinado. Alcancei a turbina com a mão e ergui-a como um troféu. Era o fruto de um roubo! Meu primeiro roubo bem sucedido! Eu conseguira! Superara todos os fracassos anteriores! Eu era FODA!

Parei o carro e vomitei no meio fio. O gosto azedo na minha boca estragou meu júbilo. Senti-me mal, sujo, escroto. Eu era um ladrão, um bandido. Minha honestidade tinha sido deflorada por uma turbina cheirosa. Mesmo o fato de eu ter saído incólume não ajudou a dourar a pílula. Contraventor. Ladrãozinho de galinhas. Trombadinha de posto de gasolina. Era isso o que eu queria? Era essa a sensação que eu buscava?

Sem conseguir mais olhar para aquela turbina, joguei-a em cima da poça de vômito. Bati a porta e fui para casa, decepcionado e orgulhoso de mim mesmo. Uma gangorra moral. Não conseguia decidir se tinha feito bem ou mal ao jogar fora a turbina. Por bem ou por mal ela já estava roubada mesmo. Ningém faria um escândalo por causa de um cheirinho roubado. Precisava jogar fora? Eu conseguiria olhar para aquilo de novo?

Foi quando me dei conta: discriminado na nota fiscal estava lá: uma linha, gasolina. Na de baixo, cheirinho.

Eu não tinha roubado nada.

Agora, doutor, fico feliz ou triste?