21.7.08

Epitáfio

Doutor,

quando cheguei na porta dele suas últimas palavras ainda reverberavam em meu crânio. Tava tudo errado. Eu não devia estar ali. Mas toquei a campainha mesmo assim. Ele abriu a porta.

- A gente precisa conversar - disse eu, sem cumprimentá-lo.

- Entra.

Entrei.

- Apê legal.

Ele não disse nada. Só trancou a porta e foi em direção ao sofá. Estava de cuecas apenas. A TV ligada num enlatado americanóide. O notebook zumbia no sofá. Ele sentou e colocou-o no colo.

- Tem breja na geladeira.

- Deixa que eu pego... Caralho! E eu achava que minha cozinha era bagunçada...

- Cala essa boca e traz uma pra mim também.

Abri a geladeira e percebi que, caso quisesse outra coisa além de cerveja estaria na roça. A não ser que eu tomasse cerveja com mostarda escura. Catei duas latas e sentei do seu lado no sofá. Na mesma hora um gato pulou no meu colo, quase me fazendo derrubar as latinhas.

- Que PORRA você tem com gatos, cara?

- Gosto de criaturas autênticas.

- É esse o problema?

Ele abriu a cerveja e tomou um gole. Depois deixou a lata no chão e digitou alguma coisa no teclado. Fiquei sem minha resposta.

- Escrevendo?

- Não. Xavecando no MSN.

- Putz...

- Que foi?

- Nada.

Recostei-me. Era tudo tão diferente da última vez. O clima, o ambiente, tudo. Bem diferente. Mas estranhamente familiar. Familiar até demais.

- Então é isso?

- Acho que é.

- Assim, sem explicações?

- Que explicação você quer ouvir?

Pensei um pouco.

- Qualquer uma.

- Esse é o problema.

- Hein?

- "Qualquer uma"? Isso lá é resposta? Isso por acaso é um diálogo? Não, não é. Isso não é interessante. Isso não é instigante. Isso não é nada. É morno. É perda de tempo. De criatividade. Desperdício. E eu odeio desperdícios.

- Você mudou...

- Você também. Ambos mudamos. Acontece. Estou mudando agora. Mudando a mim mesmo. Mudando você. E mudanças requerem sacrifícios. Chega uma hora que a gente percebe que não tem mais porque teimar com uma coisa que não tem mais futuro. É como escavar um poço seco. Acabou, muda de lugar. Muda. Para não cansar. Para não desgastar. Para não entediar. E, depois de quatro anos da mesma porcaria, já estou ficando entediado. Tenho mais medo de tédio do que da morte.

- Eu também achava que tinha.

- E não acha mais?

- Acho que não...

- Taí tua explicação.

Aquilo não estava indo bem. Virei mais um gole e acendi um cigarro. Ele me passou um cinzeiro forrado de bitucas.

- Sabe o que o doutor me disse?

- Claro que sei.

- "Você está curado, Zebedeu". Foi isso que ele disse.

- Arrã.

- Você concorda com isso?

- Não sou psiquiatra.

- Não brinque comigo.

Ele finalmente fechou o notebook e colocou-o sobre o pufe à nossa frente. Acendeu um cigarro e se ajeitou no sofá. O gato foi pro seu colo.

- Acho que sua cura nunca foi o objetivo. Talvez a minha. Mas será que eu estava realmente doente? Será que você era a causa ou o sintoma? Ou a reação imunológica? Para você tanto faz. Para mim é que a coisa pega. Em determinado momento nós nos dissociamos. Deixamos de ser o reflexo retraído de um e viramos dois. Foi o primeiro passo. Daí percebi que dois era demais. Queria voltar a ser apenas um. Uma unidade autêntica. Mas para isso eu teria que escolher com qual personalidade ficaria: a minha, a sua ou uma amálgama das duas. A escolha era óbvia. Foi óbvia. Mas para isso eu teria que matar eu e você.

- Pensei que o suicida era eu.

- Ninguém está falando em suicídio. É uma metáfora. Minha "morte" já aconteceu. Matei a maneira que eu era e hoje sou outro. Só faltava matar você.

- Mas você não me matou.

- Não. Eu te curei.

- Isso não é matar.

- No seu caso é.

- Puta que os pariu...

- Entendeu, né?

- E é só isso? Caixão lacrado, tchau e bênção?

- Arrã. Ao menos por enquanto. Nada na vida é definitivo. Nem mesmo a morte. Se preferir substitua a palavra "morte" por "animação suspensa". Mas não alimente esperanças. Perdi a Inspiração. Ela me virou as costas. Queria apenas amizade. Mas a Inspiração nunca pode ser apenas uma amiga. Precisa ser uma amante. Tem que queimar por dentro, tirar o fôlego e tudo o mais. Se não tenho mais uma inspiração digna deste rótulo, de que adianta adiar o inevitável? Sou contra a decadência. E engole esse choro! Olha que coisa mais triste. Eu xingando e você chorando. Inverteu tudo, porra! Que motivo você pode me dar para eu mudar de idéia? Nenhum. Não adianta. Para finalmente evoluir eu preciso matar o psicopata enrustido. Então é isso.

- E o que eu faço agora?

- Não é mais problema meu. Termina tua cerveja. Pega outra se quiser. Mas depois vai embora. Some daqui e não volta nunca mais.

Ele abriu o notebook novamente e o pousou no colo. O papo havia terminado. Levantei e joguei a lata no lixo. Abri a geladeira e peguei outra. Pensei em voltar ao seu lado no sofá mas vi que ele tinha razão. Era hora de ir embora. De mudar. Eu estava curado, se é que algum dia estive doente. Atravessei a porta e peguei o elevador. Saí na noite da cidade. Respirei o ar poluído e caminhei até a portaria. Era uma noite feia, fria e fedorenta. Mas era minha noite. Minha derradeira noite. E eu ia aproveitá-la ao máximo. Entrei no carro e dirigi para longe dali. Para longe daqui.

Valeu, doutor.

2.7.08

Autossomia Dissociativa

Doutor,

a melhor maneira que encontrei de iniciar um de meus relatos semi-biográficos-calcados-no-absurdo sempre é localizá-lo em um bar. É, este é um daqueles. Tem quem goste, tem que odeie, tem quem está pouco se fodendo. Me incluo no último grupo. Então, estou num bar. A cena típica. Bunda no tamborete, cotovelos no balcão, uma cerveja amornando à minha frente. Imagine você mesmo a decoração e a música ambiente (embora eu sempre imagine um velhinho sentado em um piano de cauda tocando bossa nova, mas espero que Jung explique essa). Pouco importa. É aquele momento típico de reflexões incongruentes. Neste momento sento-me ao meu lado.

- Começou?

- Claro. Achou sinceramente que ia permanecer incólume nesta situação?

- Tinha esperanças.

- Já era.

Pedi um uísque. Espero que eu tenha dinheiro para pagar. A bebida chega e tomo um trago, estalando a língua. Aproveito e acompanho-me com um grande gole do chope morno. Sabia que ia precisar.

- É esquizofrenia ou múltiplas personalidades?

- Não sei. Pode ser uma reação ao álcool e os tarja pretas.

- Seria pedir demais uma simples overdose acidental?

- Claro.

Terminei o chope e empurrei o copo, indicando que queria um refil. Eu ia precisar, pois logo em seguida sento-me do meu outro lado.

- É uma convenção?

- Acho que não. Só se for de egos.

- Não tenho um ego tão grande assim.

- Tem. Um superego.

Peço um gin tônica. Por que fiz isso? Sempre odiei gin tônica!

- Não odeia, não. Pensa que odeia. Mas no fundo gosta.

- Acho que tenho que acreditar.

- Não, não tem.

- E o senhor, vai querer alguma coisa?

Levanto o rosto para xingar o garçom, mas o garçom sou eu.

- Até tu, brucutu?

- Hein?

- Eles eu até esperava. Mas e você?

- Sou apenas uma auto-referência egomaníaca. Vai beber o que?

- Tem cianureto?

Eu ri. Quatro vezes. E me servi mais um chope.

- Qualé o papo?

- Quem começa?

- Quer um guardanapo?

- Pra quê tantas perguntas?

Observo uma bunda apertada numa calça jeans passar enquanto checo as horas, lavo copos e sinto vontade de fugir correndo.

- É só comer e jogar fora.

- É só se degradar por conta de uma boceta insignificante.

- O segredo da vida está no colo de um útero. Ou no fundo de um copo de tequila.

- Ai, meu saco...

- Que foi?

- Ele quer que falemos alguma coisa útil ou pulemos fora.

- Odeio usar gravata borboleta.

- Odeio vocês.

- Claro que odeia.

- Pega o telefone e liga pra alguém. Alguém especial. Alguém que mereça dividir sua vida com você.

- Essa pessoa não existe.

- Não ouça o que ele diz. Você sabe que existe.

- Eu já encontrei a pessoa ideal...

- Ninguém está falando com você. Traz mais uma dose.

- Imagina você estrangulando a vida dessa vadia pouco a pouco. Beijando seu último suspiro.

- Não tem suspiros. Serve amendoim?

- E qual o sentido de matá-la? O que eu ganharia com isso?

- O que você perderia?

- Viu? Até ele concorda.

- Psicologia reversa.

Bato a cabeça no balcão. Quatro vezes. Quando levanto ainda estou lá, me cercando.

- Cadê a porra da minha cerveja?

- E meu uísque?

- E meu gin?

Eu fico meio perdido. Daí arranco a gravata borboleta e confidencio comigo mesmo:

- Nada disso é necessário. Você sabe o que é necessário. Sabe o que tem que fazer. Pare de dar ouvido a contradições. Levante e aja. Chega de se dissociar. Seja. Chafurdar em autocomiseração não adianta nada. Você é um bosta, mas até aí todos somos. Levanta essa cabeça e manda todo mundo tomar no cu. Agarre a vida pelo pescoço. Olhe para ela bem no fundo de seus olhos e beije-a na boca como se fosse a última vez. Talvez seja. Nunca se sabe. Não racionalize. Não perca tempo com elocubrações. Cale-se e ouça. Olhe em volta. Você está sozinho. Sempre esteve e sempre estará. É com você. Foda-se. Enfie cerveja, uísque e gin no rabo se quiser. Não adiantará nada e não trará sentido algum. E para mim chega. Estou fora.

- Eu também.

- E eu.

Partimos. Um para cada lado. Só eu fiquei.

- E quem vai me servir mais um chope, cáspite?

16.6.08

FODA-SE JESUS!!!

Doutor,

se tem uma coisa que me tira realmente do sério é desrespeito. Todo mundo tem o direito de me odiar e de me xingar, mas não falte com o respeito. Respeito é o último bastião de racionalidade. Sem ele passaríamos o dia atirando merda uns nos outros como chimpanzés tarados.

Com religião eu penso da mesma maneira. Respeito a creça alheia caso respeitem minha ausência de crenças. Cada um na sua e foda-se. Se o pelego curte acreditar em contos de fadas e deixar sua grana para algum pastor ganancioso, problema dele. Não me meto e não dou opinião enquanto não tentarem me dogmatizar.

Pois agora tentaram.

Sábado fui numa porcaria de uma casa noturna no centro encontrar um povo e, como não estou em condições de lidar com prejuízos ou franquias, deixei meu carro num estacionamento perto do local. Fora o fato de eu ter inadvertidamente escolhido o estacionamento mais caro da região (R$13,00) não me importei muito. São os custos de viver numa cidade de merda onde o comunismo tomou uma direção completamente diferente do que os marxistas jamais imaginaram. Aqui a propriedade só é sua enquanto não a tomarem de você. E não estou falando apenas de ladrãozinho de galinha. Mas divago. Fui no tal bar e até me diverti.

Na saída encontrei o estacionamento fechado. Uma plaquinha avisava que eu precisava pegar meu carro num outro estacionamento, duzentos metros rua acima. Claro que graças ao álcool consumido estes duzentos metros se tornaram quase quatrocentos. Mas consegui chegar ao local. Fiquei até envergonhado ao entrar. Era o estacionamento de um prédio daqueles chiquérrimos. Não sei se era hotel, condomínio ou templo da Opus Dei. Tanto faz. Paguei e entreguei o tíquete. Em pouco tempo minha chimbica fedorenta foi colocada na porta para que eu finalmente fosse embora. Fui.

No caminho decidi ligar o rádio, mais para distrair o cérebro macilento e não desmaiar no volante que outra coisa. Apertei o botão e ouvi um grito estourar as caixas acústicas:

"ARREPENDEI-VOS, IRMÃOS, POIS JESUS ESTÁ VOLTANDO!"

Quase bati o carro com o susto, mas ao menos serviu pra me acordar. Dei risada até. Abaixei o volume e apertei o botão da memória do rádio. "Na fé e na vida tudo se baseia em uma só coisa: quem será você quando chegar o dia do juízo?". Outro botão: "Estamos de volta com O Despertar da Fé...". Outro: "Jesus...". Outro: "A salvação está...".

Quando as névoas de satanás... quero dizer, os pensamentos ébrios confusos se dissiparam e as idéias de possessões evangélicas automobilísticas foram descartados, veio a epifania: Algum manobrista crente bitolado havia trocado TODOS os botões de memória de meu rádio por estações evangélicas!

O que leva uma criatura ignóbil fazer uma coisa dessas? Será que ele achava que eu, de alguma maneira, iria de repente me converter só porque as memórias de meu rádio estavam gritando isso em uníssono em minha cabeça? Será que foi assim que ele se converteu, numa possessão radiofônica repentina do motoradio de seu fusca enferrujado? Será que este CRETINO nunca chegou a cogitar a idéia de que há pessoas que não se importam nem um pouco com as "verdades" profetizadas por seus larápios líderes? Ou com o retorno de Jesus, Maomé, Buda, Babalaorixá ou do Papai Noel?!? Guardadas as devidas proporções, não vejo diferença entre um animal que faz uma coisa dessas ou um que se explode numa lanchonete. Nenhuma.

Juro que pensei em voltar lá e prestar uma reclamação. Colocar esse filho de uma vaca na rua, pra ficar implorando piedade pra sua assombração favorita. Pensei mesmo, mas não estava nem com condições nem com disposição para tanto (sim, doutor, eu estava "pregado"), então fui pra casa.

Mas, em homenagem a nosso IDIOTA manobrista evangelizador corno manso, uma frase que uso apenas em ocasiões especiais:

Para mim só existem dois tipos de evangélicos: os otários e os salafrários.

E tenho dito. Qualquer problema é só mandar seu deusinho "todo poderoso" de merda falar diretamente comigo. Porque não perco meu tempo com mensageiros.

Vai tomar no cu, viu?

12.6.08

O Último Poema

Doutor,

peço relutantemente desculpas pelo texto incoerente da madrugada passada. Foi escrita sob o efeito de psicotrópicos legais e ilegais misturados a um filme sobre anões e o dia dos namorados.

Tá, pode fechar a boca agora. Seu queixo deve ter caído no umbigo, né? Limpa a baba. Velho babão é nojento. Ainda mais com esse seu cavanhaque ridículo.

O senhor bem sabe que não sou ligado a datas ou tradições. Estou pouco me fodendo para páscoa, natal ou qualquer feriado de merda como estes. Só curto a folga. É um domingo de brinde, nada mais. Sem significados ou espíritos presentes, passados ou, deus me livre, futuros. Também não ligo a mínima para feriados comerciais. Dia das mães, pais, crianças, sogras, papagaio, lontra, orgasmo...

Mas não o dia dos namorados.

Não no sentido que meus detratores devem estar resmungando resignados neste momento. Não no senso romântico. Sei lá. Me faz mal. Se tenho com quem passar esse dia eu simplesmente desapareço. Se não tenho me afundo num anonimato seguro em minha toca hermética. Telefone fora do gancho, internet desconectada, celular morto. Não quero ninguém, não desejo ninguém. Só quero ficar sozinho e celebrar minha liberdade egoísta.

Claro que não foi sempre assim. Como todo imbecil que possui um badalo útil entre as pernas já fui um babaca iludido à procura da tampa de minha panela suja de vômito. O chinelo puído pra esfregar meus pés fedorentos. Alguém pra chamar de... Vou parar antes de declamar Wando. Você entendeu. Qualquer um entenderia.

Não interessa quem ela era, como nos conhecemos, como era seu corpo, como ela gemia enquanto me chupava, o jeito como arranhava minhas costas quando gozava, o... Caralho! Não, ela não tinha caralho. Droga, embananei tudo. Foco, Zebedeu, foco!

O que interessa é que eu estava perdido. Bobo mesmo, sabe? Sorrindo pra qualquer bobagem e pensando no, deus me livre, futuro. Planos, doutor, eu fazia planos! Sim, não é uma projeção. Aconteceu mesmo. Paixão de moleque, claro, mas aconteceu.

O quê? Ah, o dia dos namorados, claro. Calma. Tinha um detalhe importante. Ela morava longe pra burro. Tipo uns 1.200km de distância. E ainda não existia internet. E interurbano era caro demais pra desperdiçar com namoricos. Era tudo na base de cartas (pois é...) e visitas mensais. Ficamos assim um ano e meio. Foda. Era complicado pra cacete viver daquela maneira, mas eu estava disposto a qualquer sacrifício. Trouxa, idiota, cretino, pastelão, mocorongo, debilóide!

Com a aproximação do dia dos namorados pintou a idéia de um presente originalmente cafona. Acionei meus contatos em sua cidade e consegui providenciar o envio de um bouquet (buquê é muito ralé) de rosas vermelhas com um cartão com um poema de meu próprio punho para sua casa.

[Pausa para que leitoras incautas recuperem o fôlego]

Lindo isso, né? O doutor sabe, no fundo sou um romântico enrustido. Mas depois daquele dia dos namorados eu apenas enrusti essa faceta um pouco mais. Bem mais. A encomenda chegou como planejado, logo de manhã, antes de ela ir para a faculdade. Ansioso como uma bichinha chiliquenta fiquei ao lado do telefone esperando sua ligação. Não teve suspense inútil, não teve ataque de pânico, nada disso. Foi perfeito. O telefone tocou no horário planejado. Era ela. "Oi, gostou das flores?", "Adorei, Zê, mas...", "Mas?", "A gente precisa conversar...".

O resto é bem óbvio, né? Não quero entrar em detalhes. Não porque doa. O doutor sabe que dor não me incomoda, mesmo que traumática. Aconteceu como aconteceu com todo mundo ao menos uma vez na vida. A primeira de muitas, marcante apenas pelo fato de ter sido a primeira. Nada demais a não ser por um detalhe. Uma epifania tardia causada por aquele prosaico e clichê momento.

Anos depois, quando as experiências e decepções subseqüentes já não era mais tão intensas, percebi que aquele foi um momento libertador. Formador de caráter. Um caráter distorcido e repugnante, mas meu. Eu era livre. Eu sou livre. E escolhi como dia para celebrar esta liberdade o exato dia que a garanti involuntariamente. Do dia que escrevi meu último poema.

E foi isso, doutor.

Com licença que preciso recarregar meu copo.

Um brinde.

Não a você, doutor.

Não a você.

Reflexão Retirada de um Filme Mela Cueca

O casamento transforma o amante em parente.

Doutor,

é isso.

Por enquanto.

Por não sei quanto.

Foda-se o que você pensa.

Neste momento sou eu contra o mundo.

E não sinto piedade do mundo.

24.5.08

Catarse numa hora destas?

Doutor,

quando o barato termina, o cigarro se apaga e o uísque seca no fundo do copo a gente saca.

Simplesmente saca.

Saca que somos descartáveis. Que somos um acúmulo casual de células fadadas à dissociação. À reassociação. À dissolução.

Sem solução.

O bêbado uma vez disse: If you're gonna to try, try all the way. Otherwise not even start it.

Graças a ele aprendi inglês, olha só.

Bela merda.

Somos todos merdas belas.

Acúmulos fecais fortuitos autômatos.

Merdas ambulantes.

Com licença, vou dar uma volta.

8.5.08

Um tanto súbita, mas não morte

Doutor,

eu não sabia como havia acabado lá, mas o certo é que abri os olhos e vi apenas o breu. Pés juntos em sapatos apertados. Alfinetes espetavam minhas costas através do tecido vagabundo do paletó idem. Eu navegava em pétalas fedorentas de rosas brancas. Assoei o algodão das narinas e gritei, o ar já rarefazendo em meu esquife. Enterrado vivo. Era só o que me faltava. Livrei as mãos e esmurrei a tampa acetinada. Berrei uma, duas vezes, sem resposta. Silêncio absoluto. Morte inevitável.

Como eu havia parado ali? Que médico imbecil consegue cometer uma gafe dessas em pleno século XXI? Forcei meu cérebro tentando recordar o que poderia ter acontecido. Nada. Nem uma pista mínima. Fui dormir e acordei aqui. Simples assim. Teria sido eu vítima do crime perfeito? Cheguei a ficar envaidecido. Quem em sã consciência perderia tempo planejando minha morte de maneira tão eficaz, tão limpa? Quem eu poderia ter provocado a ponto de querer minha morte? Parei de listar os nomes quando passaram de vinte. Sim, doutor, você estava na lista.

Por um instante minha face se contorceu num choro desesperado. Eu ia morrer! E da pior maneira possível! Sufocando lentamente em uma caixa de madeira lacrada e fedendo a rosas. Numa roupa ridícula. Sem chances de me vingar ou mesmo de arrastar meu assassino comigo. De fazê-lo provar um pouco de seu próprio veneno. De vê-lo dar seu último suspiro segundos antes do meu. Fui privado da única satisfação que eu poderia tirar de minha morte: minha vingança!

Eu não podia me render assim! Não, eu não tenho uma vida que mereça ser poupada, é claro. Sou uma seqüência de desperdícios desde o momento que nasci. Desperdícios próprios e alheios. Realmente quem fez o que fez deve ter algum motivo. Não o julgo. Mas, como bom egoísta, quero mais que estas racionalizações se fodam. Eu precisava sair dali. Esperneei e gritei o máximo que deu. Não movi a tampa nem um milímetro sequer. Desespero pela inevitabilidade. Tantas vezes pensei ter chegado a este ponto, mas nada se compara ao que senti naquele momento. Gritei até a voz acabar. Rasguei o forro de cetim da tampa e mastiguei pétalas até ficar exausto. Depressão. Ninguém me ouviria. Era o meu fim. Acabou. Morri.

Fodeu.

Foi em meu silêncio mórbido que ouvi as primeiras batidas do cinzel no lacre de concreto. Alguém tinha me ouvido. Tentei continuar gritando, mas quase morri engasgado pelas pétalas. Tossi tanto que, durante as convulsões, bati a cabeça na tampa do caixão algumas vezes. Dane-se. As cinzeladas continuavam, cada vez mais fortes. As lágrimas que escorriam agora eram de alívio. Será que havia ar suficiente em meu esquife para que meu salvador chegasse? Tentei relaxar. "Se eu sair daqui prometo que tudo será diferente", pensei. Eu mudaria. Seria uma pessoa melhor. Alguém respeitável. Alguém que faria a vida valer a pena. Chega de desperdício.

De repente meu mundo inteiro tremeu. O caixão era erguido. Quase lá, quase. Senti a pancada quando fui jogado ao chão. Um parafuso. Outro. Mais um. Pode respirar à vontade agora. Tem ar suficiente. Mais outro. E outro. Quantos parafusos tem essa porra de caixão, caralho?!

A tampa então é aberta e a chuva cai torrencialmente em meu rosto, lavando as lágrimas. Parado ao lado do caixão uma criatura disforme pela precipitação e ofuscação. Um cigarro em sua boca continua aceso mesmo sob a chuva. Será?

- Quem é você? - perguntei antes mesmo de agradecer. Ele não respondeu. Apenas bateu de leve com o indicador em sua têmpora.

Que merda era aquela? Era ele que tinha me colocado lá? Levantei, espalhando flores pelo chão molhado. A roupa apertada limitava meus movimentos, mas mesmo assim consegui agarrá-lo pelo pescoço. O cigarro caiu e assobiou no chão. Sua expressão era de medo. Medo genuíno. Que delícia.

- Não... fui... eu... que... - engasgou ele. Apertei mais seu pescoço.

- Estou pouco me fodendo. Você está perto. É o suficiente.

Ele começou a se debater, mas estranhamente não tinha força alguma. Era apenas uma sombra raquítica, uma imagem projetada de um ego inflado. Uma xerox amarelada e borrada. Não valia o esforço. Com uma joelhada em seu estômago larguei-o sobre uma poça d'água. Foi quando eu vi o ego original escondido sob um oratório. Seus olhos estavam arregalados como os de um cachorro prestes a ser atropelado. Olhei para ele e sorri.

- Está com medo do que? Não era isso o que você queria?

Ele não respondeu. Ficou ali, parado com sua cara de pastel amanhecido. Não me fiz de rogado e chutei sua criatura mais uma vez. Acho que ambos sentiram o golpe. Espero que tenham sentido. Puxei catarro e cuspi no rosto disforme aos meus pés.

- Você queria isso que eu sei - eu disse, em meio a uma risada. - Agora agüenta. E não me diga que não avisei!

Ele se virou e saiu correndo. Apenas observei enquanto ele cambaleava por entre os túmulos em direção à saída. Não o persegui. Sabia que o veria de novo ainda. Alguns carrapatos são mais difíceis de se livrar que outros. Mas a mensagem estava dada. Ajeitei o máximo que pude meu paletó vagabundo e fui embora. Para casa. Para a nova vida.

Agora agüenta.

Não diga que não avisei.

5.5.08

Anti-atividade

Doutor,

sabe como aumentar sua respeitabilidade no ambiente de trabalho com apenas uma frase? É simples. Deixa eu explicar passo a passo pois você é meio lentinho:

1) Aguarde o exato momento quando estão instalando alguma coisa, tipo carpete, divisórias, etc. Programas de computador não vale.

2) Quando começarem a espalhar aquela cola que tem aquele cheiro característico (é, ESSA mesmo) pare do lado e abra um sorriso.

3) Quando algum superior seu passar por perto, simplesmente largue a frase: "Ah, que saudades do meu tempo de moleque...".

4) Aproveite o respeito recém adquirido.

Viu que fácil, doutor?

Vou longe nesta empresa, não acha?

28.4.08

Arrotando Tutu

Doutor,

você bem sabe que não tenho e nunca tive pretensão nenhuma de ficar rico. Nenhum objetivo de angariar mais dinheiro que eu possa gastar. Sei bem de minhas capacidades econômicas e já a algum tempo assumi essa minha limitação. Sou pobre e sempre serei. Vivo num apartamento modesto, dirijo um carro velho e estropiado e me visto com roupas puídas e fora de moda (aliás, o que é moda?). Sou o que sou e não tenho vergonha nenhuma disso. Não tenho orgulho, mas tampouco tenho vergonha. Tenho o estilo condizente com os meus rendimentos e não mais que isso. Sou...

Ah, você entendeu!

O que EU não entendo é essa mania que o povo tem de aparentar mais grana do que realmente tem. Manja aquele negócio de comer tutu e arrotar caviar? Gastam tudo e um pouco apenas mais para ostentar o que não tem. Compram carrões em crediários gigantescos, apartamentos caríssimos com juros escorchantes, roupas de griffe pornograficamente caras, acessórios e balangandãs inúteis só para mostrar que são ricos. Quando não são. Mas não interessa o que se é. Interessa o que os outros acham que você é. A opinião alheia é mais importante que a própria. Realmente não consigo compreender.

Digo isso pois ontem eu estava voltando de um churrasco e, numa crise de bobeira, deu uma fome absurda. É, eu mais bebi que comi no churrasco (MUITO mais). Convenientemente estava passando ao lado de um McDonald's. Como estava com preguiça para cozinhar e sem saco para entrar em restaurante, embiquei no drive-thru. Na minha frente um baita carrão daqueles, sabe? É, porque eu mesmo não sei. Não entendo porra nenhuma de carros. Só sei que era daqueles que chamariam a atenção até em feiras de automóveis. Novo, limpinho, brilhante, coisa fina. De curiosidade olhei para o espelho retrovisor, só para sacar a cara do motorista. Era uma garota de, no máximo, uns 25 anos. Linda, toda arrumada e emperequetada. O braço esquerdo estava com ao menos umas 20 pulseiras com aparência de caras. O cabelo loiro indefectível, o que, num domingo a noite, é coisa rara de se ver. Rosto bem maquiado. Roupa impecável. Linda mesmo. Sério.

Mas como expliquei no primeiro parágrafo, tenho plena noção de meu estado atual e do que as pessoas pensam de mim. Sabia nesta primeira análise que uma mulher daquela só chegaria perto de mim se fosse pra dar esmola ou enxotar. Ou ignorar acintosamente. Aumentei o volume de meu rádio até que as caixas estourassem e estragassem completamente a música. A fila andou um pouco e chegou a vez da mini-perua-em-experiência fazer seu pedido. Fez. Forma de pagamento? A mão excepcionalmente manicurada entregou um cartão daqueles "platina" ou "diamante". Ela digitou a senha e ambos aguardamos. Meu estômago roncava. Cartão recusado. Deu outro. Mesmo ritual. Mesmo resultado. Mais um cartão, mais uma recusa. Outro! E mais um! Todos sumariamente recusados. O pessoal na fila começava a ficar impaciente. Buzinadinhas, "puta que os pariu" escapando pelas janelas abertas. Eu só observando enquanto a graça e a pose da vaquinha desapareciam aos poucos. Quando ela entregou um VALE-REFEIÇÃO vi que já não havia mais esperanças de redenção de sua pose. E pior: igualmente recusado!

Aí decidi interferir. Desci do carro e perguntei qual o motivo de tamanha demora. Ela engasgou ao tentar responder. O atendente ficou elegantemente mudo. Disparei: "Querida, se não tem como pagar, porque não sai fora? Tem gente com fome aqui querendo comer...". Ela nem se dignou a tentar responder. Sacou o celular e ligou pra alguém. Meu movimento motivou os motoristas atrás de mim a dispararem suas buzinas. Por conta do barulho ela teve que gritar no telefone: "Sou eu, benhÊÊ. Estou no Mac e não estou conseguindo passar nenhum cartão. Já tentei. Esse também. TODOS! Juro! Não sei, espera", e se dirigiu ao atendente: "Moço, aceita cheque?". Até eu, na minha ignorância completa, sei que o MacDonald's não aceita cheques faz tempo. O desespero e as buzinas iam a mil.

Eu podia ter feito tanta coisa ruim, doutor. Tanta crueldade. Podia deixá-la como uma galinha d'angola numa montanha russa desgovernada se eu quisesse. Claro que podia. Mas ao invés disso simplesmente perguntei ao atendente quanto tinha saído a compra dela. "Dezessete e cinqüenta". Saquei a carteira e paguei com uma nota de vinte. O cara não acreditou, mas confirmei com um gesto de cabeça. Vai nessa, pode cobrar. Me dá o troco.

Só aí que a perua-destronada percebeu o que estava acontecendo. Ela tentou dizer que não era pra eu fazer aquilo, que ela ia conseguir, essas coisas. Rejeitei magnanimamente seus argumentos com um sorriso. Ela não sabia onde enfiar a cara. Desligou o celular na cara do BenhÊÊ e me pediu o número de minha conta, que ela me pagaria aquilo amanhã mesmo, essas coisas. Recusei solenemente. Ao invés disso cheguei perto dela e soltei o golpe fatal:

- Relaxa, linda. Eu arroto tutu.

Voltei pro meu carro antes que ela conseguisse entender o que eu tinha dito. Duvido que algum dia entenda, mas tenho esperanças. Ela pegou sua sacola marrom e saiu fritando pneus. Fiz na seqüência meu pedido e fui pra casa comer.

Garanto uma coisa: foi o melhor Big Mac da minha vida.


23.4.08

Capitulação

Doutor,

eu desisto.

Desisto de tentar. Qualquer coisa. De buscar e se decepcionar. De fugir e não conseguir se esconder. De procurar soluções e se frustrar ao descobrir que elas de nada servem ou apenas servem para gerar mais problemas.

Desisto da humanidade. A humanidade está fadada ao fracasso inexorável. Por mais que teimemos em prolongar nossa permanência nefasta no planeta um dia perceberemos que o mundo estará bem melhor sem nós. Sim, doutor, eu me incluo nessa turba. E te incluo. A todos nós. Você também, meu caríssimo leitor ignóbil que vem aqui sem ser convidado. Sua mãe também. Toda sua família. E a minha. E daí?

Foda-se quem jogou a porra da menina pela janela. Se foi o pai, a madrasta, o Peter Pan ou o espírito santo. Foda-se o destino do padre-voador-bisonho e suas bexigas multicoloridas. Foda-se a terra que treme e a falta de assunto da TV aberta.

Desisto também de tentar me matar, seja rápida ou lentamente. Apenas sigo em frente estagnado. Desisto de sentir raiva ou tristeza ou mesmo qualquer sinal de alegria. De procurar sentido numa realidade niilista. De mijar dentro do balde. De respeitar qualquer lei. De batalhar dia a dia tentando prolongar minha existência medíocre. De ajudar os outros a prolongarem suas.

Não, doutor. Não desisto da vida. Desisto de me preocupar em existir.

E, na boa, pouco me interessa sua opinião ou a de qualquer um a este respeito. Foda-se se parece "emo" ou qualquer outra merda rotulada por cabecinhas limítrofes. Pensem a porra que quiserem. Chafurdem em seus raciocínios lógicos. Simplesmente cansei. Não tento mais nada. Sou um subproduto do mero acaso e é com isso que arrastarei meus dias. Chega de vitórias mesquinhas e declarações de renda. De contas infinitas e ganhos limitados. De psicanalistas sem respostas e malucos sem perguntas. De idiotas que não entendem piadas ou que as levam ao pé da letra.

Eu abraço a insanidade e beijo-a de língua.

Pau em violenta ereção sem nenhum motivo aparente.

Pega e chupa quem quiser.

Pouco importa.

Eu desisto.

E ponto final.


22.4.08

Sacode!

Doutor,

sentiu a terra tremer? Não, não eram os feijões pururuca que você comeu na janta. Foi terremoto mesmo. Que nem nos filmes. Chique, né?

Mas o que eu tenho a ver com isso?

Porra nenhuma.

Só que vai ser foda agüentar amanhã a turba cretina dos evangélicos falando que este é o primeiro sinal do apocalipse. Não vai ter outro assunto na Universal por dias!

A única coisa que vamos ter em comum é a decepção por não ter morrido ninguém...

14.4.08

Top 5 - Momentos Bizarros no Cinema

Doutor,

li aqui uma divertida lista de momentos bizarros acontecidos no cinema. É uma lista interessante, e alguns dos momentos são mesmo bizarros. Mas, como o doutor bem sabe, o maior ímã de maluco que existe é este que voz escreve irregularmente. Então, numa demonstração de completa falta de originalidade de minha parte, faço aqui a minha própria lista semelhante:

5- O Resgate do Soldado Ryan

Sala cheia. Lotada. Infernal. Do meu lado senta uma loira simplesmente deslumbrante junto com o namorado. Normalmente eu ficaria feliz apenas pela visão daqueles peitos no decote, mas ela já demonstrou sua limitada capacidade mental logo nos comerciais. Eu sabia que ia ficar irritado mas como não havia mais lugares disponíveis na sala, me resignei. Ela passou a primeira meia hora do filme (quem assistiu sabe do que estou falando) soltando gritinhos como "Ai, que horror!", "Nossa!", e levando sustinhos histéricos na cadeira, como se tivesse um vibrador intermitente em seu assento. Mas isso não foi o pior. Logo que a invasão da Normandia termina e o filme em si começa, ela dispara: "Quem é o soldado Ryan?". O namorado pacientemente explica que é quem eles tinham que resgatar (que ela conseguiria descobrir caso tivesse prestado atenção na PORRA do nome do filme...). Não funcionou. Ela passou o filme inteiro perguntando pro namorado "Esse é o Ryan?" pra cada soldado que passava na tela. Levando em conta que é um filme de guerra e TODOS os personagens na tela são soldados, imagina como eu estava? Quando finalmente surge o maldito soldado Ryan, viro e aponto pra ela: "ESSE é o Ryan! Satisfeita agora?". O namorado ri. E ela coloca a cereja no bolo: "Mas o Ryan não era o Tom Hanks?". Assistimos o resto do filme em total silêncio depois disso.

4- Twister

Assistir lançamento de blockbuster é sempre uma merda. Adolescentes lotavam a sessão. Como esse é um filme que se sustenta nos efeitos visuais e sonoros, o volume estava no máximo. Isso não foi o suficiente para um moleque do meu lado calar a boca durante o filme inteiro. Comecei de leve, dando aquela famosa olhadinha de esguelha. Não adiantou. Ele queria aparecer mais que o filme. Gritava, fazia piadinhas, batia palmas, etc. Em determinado momento mandei-o calar a boca. Ele respondeu alguma coisa, mas não deu pra ouvir. Foi quando a famosa cena da vaca passou. Ele simplesmente se descontrolou. Ria e berrava como uma hiena anfetaminada. Não deu mais pra agüentar. Levantei da cadeira e fui em sua direção. Desci o braço. Consegui esmurrá-lo umas 5 ou 6 vezes antes das luzes se acenderem e os seguranças chegarem e nos colocarem pra fora do cinema. Nunca assisti ao final desse filme (estava uma merda mesmo sem a intervenção do moleque).

3- Parque dos Dinossauros

Fui assistir esse com minha prima que tinha vindo do interior. A sala estava em silêncio estupefato durante a projeção (os efeitos eram realmente impressionantes para a época). Nada podia atrapalhar. No momento mais tenso do filme, a cena da cozinha, um maluco se levanta umas duas ou três fileiras na frente da minha, pega um cara da platéia pelo colarinho e o arrasta até a parede. Lá começa a aplicar uma senhora surra no coitado. Filme pára, luzes se acendem, o caos governa. De repente todo mundo estava no meio da briga. Minha prima se assustou e eu, para descontraí-la (sim, eu tinha planos) disse: "Relaxa. É cinema 3D". Ela riu nervosa, mas o cara do meu lado soltou um "Não tem a menor graça..." e em seguida "Vou resolver isso agora!". Se levantou e tirou um revólver da cintura! Sério, doutor, não estou brincando! Puxei minha prima e nos escondemos entre os encostos. O maluco ergueu a pistola e disparou duas ou três vezes para o alto. Aí virou um pandemônio. A briga realmente terminou, mas todo mundo saiu correndo, se acotovelando e gritando apavorados. Não tinha como eu fugir também, pois pra sair teríamos que passar pelo maluco, então ficamos lá, abaixados. De repente a sala ficou vazia. Não sei bem o que aconteceu. Sentamos na cadeira pra nos refazer do susto quando apareceu um funcionário do cinema. Perguntei: "Não dá pra ligar o filme de novo? Estava REALMENTE legal...". Não deu certo.

2- Traídos pelo Desejo

Esse eu levei uma paquerinha do tempo do colégio. Na verdade nem queríamos assistir filme nenhum, só arrumar um lugar escuro pra se beijar sem interrupções. Escolhemos o filme a esmo. Entramos e começamos a sessão esfrega-e-agarra. Só que o filme era interessante. Começamos a prestar atenção (mesmo parando de vez em quando). Chega a cena que o terrorista leva a "corista" pro quarto dela. Éramos adolescentes fazendo coisas proibidas, hormônios à flor da pele. O clima estava perfeito até a maldita "corista" tirar seu robe e libertar sua mandrulha assassina. Brochamos os dois na mesma hora. Perto da gente percebi que o efeito foi semelhante. Metade da platéia se levantou e foi embora. Nós os acompanhamos.


1- Factotum

Esse eu fui assistir na única sala que foi exibido por aqui, numa quarta feira a tarde (eu estava de férias). Pra quem não sabe, o filme é baseado na obra homônima de Charles Bukowski, escritor famoso pelo tom explícito, quase pornô e altamente escatológico. Eu adoro. Mas qual não foi minha surpresa ao ver que só havia duas velhinhas na platéia. Era eu e elas. Uma delas estava totalmente alienada, como se estivesse num transe medicinal. A outra estava fazendo TRICÔ! Muito bizarro mesmo. Começou o filme, ao qual assistimos inteirinho sem interrupções (a velhinha em transe podia estar morta, pensei, mas não foi o caso). Quando o filme terminou fiquei alguns momentos ainda digerindo a experiência (assista ao filme pra entender). Ao meu lado a velhinha tricoteira me olhava com um sorriso. Sorri de volta. Ela então soltou: "Bukowski é foda, não é, meu filho?". Demos umas boas risadas. Levantei-me e nos abraçamos. Não, doutor, não rolou nada. Saímos da sessão e nunca mais nos vimos.

PS.: Para quem além do doutor ler isso: não é uma porra de um meme, nada disso. É só um plágio. Fiz porque quis. Faça uma se quiser. Só não me avise, ok?

PPS: Não, doutor, eu não assisti a "Clube da Luta" no Morumbi. Eu tava na sala ao lado...

10.4.08

Bisonhices na madruga

Doutor,

noite passada, após a habitual luta diária contra a insônia, consegui finalmente pregar os olhos às 2 da manhã. Televisão, computador, rádio, cérebro, tudo desligado. Deitei e fechei os olhos, pronto para encerrar mais um dia miserável igual a todos os outros.

Mas é claro que essa história não teria a menor graça se fosse apenas isso. Não, caro doutor, a desgraça é uma companhia teimosa e inconveniente. Poucos minutos após ter encostado o encéfalo cansado no travesseiro puído começo a sentir uma coceira chata no antebraço esquerdo. Não era uma simples coceirinha. Era uma daquelas. Inchou muito rápido. Enquanto ainda coçava a primeira veio a segunda picada. A terceira. A quarta. Era um ataque! Arremessei o cobertor longe, temendo pulgas, e comecei a me coçar inteiro, maldizendo a mim mesmo por não ter um pote de calamina ou algo que o valha por perto. Acendi a luz e descobri que o problema não eram pulgas, mas mosquitos. Um enxame deles! Corri para a área de serviço. Iria terminar a emboscada mosquitífera com doses maciças de inseticida. Peguei o spray e, quando estava pronto para substituir toda a atmosfera de meu apê em uma nuvem venenosa lembrei-me de minha gata. Queria matar mosquitos, mas não ela. Não ainda. Ela tem sua utilidade. Não sei bem qual, mas que tem alguma, isso tem.

Toca procurar a gata.

Encontrei-a embaixo do sofá, roncando de boca aberta. Sem muita paciência (lembre-se: eu estava coçando inteiro) puxei-a e a coloquei no colo. Meu plano era simples: com a gata no colo eu passaria inseticida. Depois nos abrigaríamos no banheiro até a nuvem tóxica se dissipar. Simples assim.

Só esqueci de um simples detalhe: gatos e sprays não se dão exatamente muito bem juntos. Assim que apertei a válvula do inseticida e o primeiro tisss... se fez ouvir, minha gata se transformou imediatamente num demônio da Tasmânia. É, igual ao desenho. Uma nuvem de garras, dentes e pêlos dilaceraram meu braço, peito e pescoço. Derrubei a lata e a gata ao mesmo tempo, berrando e sangrando. A lata rodopiou pelo chão até se esconder debaixo do sofá. A gata se desmaterializou como por mágica. Acho que acordei o prédio inteiro com os xingamentos. Fui no banheiro e estanquei o sangue o melhor que pude (com pedaços de papel higiênico, pois os bandêides tinham terminado). Com metade do corpo coberto de trapos higiênicos, saí em busca da maldita felina. Não para matá-la, como deveria, mas para prendê-la no banheiro. Fiquei imaginando os mosquitos vendo todo aquele sangue em mim e babando como moleques de rua ao verem uma pilha de crack. Mesmo assim levei absurdos 45 MINUTOS para conseguir capturá-la, tão arisca ela estava após o susto. Agarrei-a pelo cangote e prendi-a no box do chuveiro. Em seguida esvaziei a lata de inseticida no apartamento inteiro e me tranquei no banheiro. Esperei lá por quase duas horas, até que o cheiro de veneno se dissipasse.

Saldo da bisonhice: só consegui deitar efetivamente já passava das 5 e meia da manhã.

Desliguei o despertador e usei as últimas idéias coerentes para inventar uma desculpa para faltar no trabalho hoje. Não consegui inventar nenhuma boa, mas dormi assim mesmo.

Acordei às 8 da manhã com a voz de minha diarista me dizendo: "Seu Zebedeu, não tem um produto de limpeza aqui. 'Cabou tudo. Tem que comprar, senão não dá pra trabalhar, não...". Meia hora depois estava eu no supermercado, comprando produtos de limpeza como um zumbi. Peguei uma fila monstruosa para pagar a compra mirrada. Quem além de alguém completamente desesperado vai ao mercado às 9 da manhã?! Ou o mundo está povoado por desesperados ou há poucas esperanças para a humanidade. Mas divago.

Voltei pra casa e já passava das 10. Entreguei o pacote e peguei minhas coisas, resignado a ter que ir trabalhar com pouco mais de 2 horas de sono mesmo, quando a faxineira me pergunta:

- Seu Zebedeu, a gata tá trancada no box por alguma razão? Ela tá miando que nem uma louca...

Putz, a gata! Resisti ao primeiro impulso de ir lá libertá-la e, olhando para as feridas em meu braço e lembrando da dor da noite anterior, sentenciei:

- Deixa ela lá. Ela merece. Se começar a desidratar liga o chuveiro e tá tudo certo.

Eu poderia enquadrar a expressão de minha faxineira e olhar todo dia antes de ir pro trabalho. Clássico.

Se alguém da APA* ligar aí, você não me conhece, hein?

* Associação Protetora dos Animais

9.4.08

Histórias

Doutor,

certas histórias são tão intensas, tão poderosas, que você sente que se as colocar em palavras irá apenas diminuí-las. Desmerecê-las.

Sendo assim vou manter esta apenas para mim.

1.4.08

Tragédia?

Doutor,

eu fiz tudo certo. Fiz sim. Fiz do jeito que você disse. E foi do jeito que você disse. Libertei minha psique dos grilhões, por mais cafona que possa parecer. Estou mais leve, mais centrado. Agitado ainda, é certo, mas é uma agitação boa, como há muito não sentia. Adrenalina e endorfina. O drinque dos deuses. O veneno de Phobos.

O medo acabou.

Fiz tudo certo. Tudo direitinho. Segui-a depois do trabalho. Ela nem me percebeu. Ela nunca me percebeu. Segui-a até o metrô. Entrei no vagão incógnito como o resto. Mais um rosto cinza, por mais que eu teimasse em não parar de suar, mesmo sob o forte ar-condicionado. Ela ficou lá, segurando a barra de aço com dedos murchos. Imaginei-a batendo uma punheta com aqueles dedinhos frouxos. Imaginei que deveria ser semelhante a receber um boquete de uma mendiga desdentada. A boca ruminava um chiclete. Os olhos tontos meio chapados davam a ela um ar de retardada. Mas eu sabia que ela não era de retardada. Estava só se fazendo. Estava só atraindo.

Claro que não demorou. Um pedreiro, peão, sei lá, chegou perto e, com a discrição de uma jaca num sushi-bar, começou a esfregar-se em sua bunda perfeitamente confinada pelo jeans. Ela se virou, fazendo ar de indignada, e se afastou. O peão também, resmungando. Puta. Piranha. Vagabunda. Instiga e depois esnoba. Vaca.

Continuei seguindo-a quando ela saiu do vagão. Quase a perco no tumulto da estação. Na rua a tarefa era mais difícil, mas consegui não ser descoberto. Ela chegou em sua casa, abriu o portão e entrou. Eu fiquei lá. Sabia que ela não morava sozinha. Rádio peão. Em poucos minutos sua colega de quarto iria embora, trabalhar ou numa loja de conveniência ou num puteiro. Só alguns minutos. O tempo exato para bolar um plano de invasão.

No final foi mais simples que eu imaginava. A colega saiu e não trancou a porta. Só bastou esperar a luz do banheiro acender para entrar. Corri, ouvindo a sua cantoria de harpia no banheiro. Entrei em seu quarto e travei por um instante, incerto do que estava fazendo ali. Ainda tinha volta. Que idéia estúpida! Vai embora, Zebedeu. Ainda dá tempo. Sai daí!

Óbvio que, tão centrado estava em minhas dúvidas que não percebi que ela tinha terminado seu banho. Só me toquei quando ouvi a cantilena mais e mais alta no corredor. E como o pânico geralmente atrai clichês, corri e me escondi no armário. Pela fresta a vi entrar no quarto, nua, a toalha enrolada na cabeça. Linda, linda, perfeita em cada curva, cada desenho em sua pele. Notei com prazer que ela tinha os convenientes apoios para polegares em suas costas. Sabe? Aquelas pequenas depressões gêmeas na base das costas, logo acima das nádegas, que apenas as mulheres mais deliciosas têm? Apenas as mulheres anatomicamente perfeitas para serem enrabadas? Seria uma pena, um desperdício...

Enquanto ela se ajeitava, ainda nua, na banqueta em frente a uma antiga penteadeira, eu me despia, controlando-me ao máximo para não fazer barulho. Agora não tinha mais volta. Ela passava cremes e mais cremes no rosto. Alguns no corpo. Deu para ver sua pele se arrepiar mais de uma vez. Era quase uma masturbação. Uma masturbação que beirava o auto-lesbianismo. Uma ninfa narcisística. Que infelizmente foi interrompida por seu celular estridente (alguma música techno-trance-qualquer-merda-dessas). Atendeu. Alôs, gritinhos e gracinhas. Putinha. Vaquinha. Piranhinha. Comecei a tremer. Segurar o cabo da faca ajudou. Ela continuava fofocando no telefone. Fofocando do mesmo modo que fofocava no escritório. No almoço. Toda hora. Fofoqueira de merda.

- Quem? O Zebedeu? Aquele estranho da área de... Nãããããããooooo, menina! Aquele é uma bicha. Não pega ninguém, não. Claro que falo! Tá protegendo por que? Nada. Se não for bicha é brocha, o que no final das contas dá no mesmo, né? Hahahahahahahaha. Você não existe...

Chutei a porta e finalmente saí do armário. Nu. De faca em punho. Ela gritou, arremessando o celular no susto, que quicou duas vezes antes de pousar perto de meu pé direito. Peguei-o e li o nome na tela. Próximo alvo. Desliguei a ligação e arremessei o aparelho pra longe. Ela já choramingava e escondia a nudez pateticamente. Perguntou alguma coisa, xingou algumas vezes. Berrou, pediu ajuda, desculpas, piedade. Arrastou-se perto de mim e ameaçou abocanhar meu pau em riste. Uma bofetada a fez mudar de idéia. Pânico. Gostei. Se arrastou para longe. Segui-a lentamente, tal qual um monstro de um filme B. Funciona. Por mais que ela se esforçasse, apenas dois passos meus já a deixavam sob meu alcance novamente. Não a deixei chegar ao corredor. Puxei-a pelos cabelos e, com um corte limpo, abri sua garganta de lado a lado. Uma nova boca que, quiçá, vai expelir menos merda. Um pouco mais de sangue, é certo, mas menos merda. Ela gargarejou e se retorceu. O grito já nasceu afogado. Ninguém para te ouvir, lindinha. Ninguém para testemunhar seus estertores além de mim. E eu os testemunho com gosto, até o último espasmo. Morta.

Mas não acabada.

Ajeitei seu corpo o melhor que pude. Abri suas pernas e vi por alguns minutos seu sexo. Uma bela boceta, lábios gordos, depiladinha, mas completamente seca. Árida. Puxei um escarro das entranhas e cuspi em cima dela. Cuspi também em meu próprio pau. Em seguida penetrei. Doeu pra burro, mas não parei por causa disso. Meti, fodi e trepei até quase gozar. Daí saí de cima dela. Coloquei em sua boca e finalmente me aliviei. Seus lábios inertes sorveram com cuidado cada gota. Levantei-me, peguei minhas roupas, me vesti e fui embora. Sorridente. Feliz. Realizado.

Desenrustido.

Finalmente.

Uma data a ser comemorada.

Doutor, que dia é hoje?

3.3.08

Panorâmica sem cortes

O sangue espirrou no asfalto e no tênis novo de Amadeu, fazendo-o xingar tão alto que ofendeu o evangélico Baltazar, que sempre teve orgulho do nome bíblico, apesar de não saber absolutamente nada a respeito do tal personagem, da mesma maneira que Carine também não o conhecia, mas sentia o cheiro acre do suor exalado em suas pregações no meio da praça, torcendo o nariz da maneira que Daniel mais gostava, daquele jeito de menina sapeca que as sardas ressaltavam e o faziam recordar da paixão juvenil por Eleanor, sua primeira professora que, por pura coincidência narrativa, passava ao largo naquele exato instante sem reconhecer os ex-alunos, desviando-se quase na última hora de Felipe, cuja pressa não permitia que perdesse tempo com bobagens, o que o fez trombar com Gisele, assustando-a de tal maneira que seus gritos por um breve instante retiraram Hugo da meditação contemplativa das pombas da praça e o fizeram pensar novamente em Ivana, sua mulher, que havia marcado o encontro com ele lá, na saída do escritório, mas que, graças a Juarez, o chefe da repartição que saía naquele momento da garagem com seu sedã preto, se atrasara, obrigando seu Lima a adiar o fechamento do prédio e a afastar o sono de doze horas de pé com mais uma xícara de café que dona Maria, a copeira, havia salvado da última garrafa térmica da reunião da diretoria, para irritação de sua supervisora, a famigerada e temida Neide, relações pública e torturadora amadora, descontando nos pobres incautos a frustração de sua paixão não correspondida pelo diretor de aquisições, o Dr. Otacílio, que não era doutor em nada, mas gostava de ser chamado desta maneira, pois acreditava que inspirava respeito, algo que seu funcionário e puxa-saco de plantão, o Plínio, fazia questão de ressaltar, para ódio e frustração de Quênia, cujas últimas promoções foram sumariamente rejeitadas por conta do tal puxa-saco e de seu escudeiro, o fofoqueiro Rodrigo, que a havia flagrado aos beijos com Saulo na saída de emergência e ameaçado contar tudo para a namorada traída, Tânia, que por acaso também era a estagiária predileta de Ubirajara, o vice-presidente de tecnologia que estava tão entretido ao telefone com Veridiana, sua esposa, tentando convencê-la de que não conhecia nenhum nome que começava com a letra X para dar a seu bebê que nem notou quando Zé, analista de sistemas e deprimido, se atirou pela janela, espatifando-se como um melão maduro na calçada.

--

Taí, doutor.

Você queria uma amostra do que ando escrevendo, então coloco para você um texto reciclado. Antigo, apócrifo e anormal. Como eu.

Espero que odeie.

26.2.08

Estaca Zero

Doutor,

Lá estava eu novamente, remoendo idéias lubrificadas com álcool vagabundo, sentando a bunda num tamborete dum balcão de um bar qualquer. O copo, o guardanapo, o maço amassado, o isqueiro com pouco fluido, os olhos fixos, o cérebro a mil. Quando, para variar, alguém senta-se do meu lado.

- Problemas, amigo?

Normalmente apenas resmungo em resposta. Mas desta vez olhei para ver que figura meu Ímã de Malucos havia atraído. Um garoto. Imberbe. No máximo dezoito anos (o que deduzi apenas por estar bebendo um chope e não uma coca). Olhos claros. Cabelos impecavelmente longos. Camiseta branca. Pegou meu isqueiro sem pedir e acendeu um cigarro. Cravo.

- Não é da tua conta.

- Claro que não - riu ele, soprando fumaça enjoativa em minha direção. - Nunca é da conta de ninguém. Todos somos ilhas flutuando num oceano de indiferença. Não é?

- Eu mereço...

- Mas seus problemas eu sei quais são. Você está cansado de ser bonzinho. De ser o último idiota da Terra. Cansou de ser passado para trás. Estou errado?

Agora ele tinha conseguido minha atenção. Mas não o suficiente para que eu desse alguma trela. Isso não o impediu de continuar.

- A verdade é que você descobriu a duras penas que ser bom, ser correto só lhe traz problemas. Só lhe traz complicações. Não é isso?

- E quem te disse que eu sou bom?

- Eu sei.

- Sabe como?

- Eu sei tudo.

Pronto, agora quem sabia era eu. Mais um megalomaníaco pra minha coleção.

- Sabe tudo? Você é um tipo de deus?

- Não.

Ufa!

- Sou o filho Dele.

Minha cabeça desabou e quicou duas vezes no balcão. Resmunguei algo como "putaqueopariuporquesempretemumaMERDAdefilhodaputaseachandoJesusnomeucaminho?". Ele riu. Levantei a cabeça.

- E o que o filho do cara está fazendo num boteco fedorento...

- Ei!

- Foi mal, Zé. Traz outra, por favor? Continuando, o que o Jesus reencarnado está fazendo aqui, conversando com um merda como eu? Não tem uma humanidade inteira lá fora para você salvar?

- A humanidade está além de qualquer salvação. Não retornei para salvar a humanidade. Retornei para salvar o homem. Os homens como você. Não sou o cordeiro. Sou o lobo da evolução. Sou a mão esquerda. Aquela que destruirá, e não a que afagará.

- Bom trabalho. Espero que tenha sucesso.

- Terei. Pode acreditar.

- Perdoe minha falta de fé.

Ele tomou mais um gole do chope e tragou novamente o cigarro. Tossiu, com certeza pouco habituado aos vícios mundanos. Um Jesus moleque. Não sei por que mas fui com sua cara.

- Tá, Jesus. Me conta uma parábola então. Algo que me faça pensar a respeito de perguntas que nunca fiz e que não me interessam.

- Não tenho parábolas. Não sou o mensageiro, sou a mensagem. Não trago iluminação, trago epifania.

- Vai ter que fazer melhor que isso pra me convencer, pirralho.

- Não preciso te convencer. Você já é um convertido. Você é minha ferramenta. Através de você espalharemos a nova palavra no meio da perdição.

Refleti a respeito disso um instante, enquanto Zé colocava uma dose em minha frente e levava o copo vazio embora.

- Quer que eu seja seu apóstolo?

- Isso.

Um apóstolo de um messias da destruição da humanidade? Não era uma idéia tão ruim assim. Eu realmente havia chegado a uma conclusão que não adiantava nada ser bonzinho. Bonzinho só se fode. Bonzinho paga o preço dos cruéis. De repente era hora de mudar de estratégia. Espalhar o caos, a destruição, o ódio. Uma eugenia forçada. O mundo seria meu labirinto e os humanos meus ratos. Gostei da idéia. Ia responder isso a ele, mas vendo-o fumar com tanto prazer seu cigarrinho de cravo fiquei com vontade de fumar também. Puxei o maço, tirei um cigarro todo torto de dentro e resgatei o isqueiro. Clique, clique, nada. Só faísca. Sacudi-o. Clique, clique, clique. Porra nenhuma. O Zé não estava à vista. No bar apenas eu e Jesus. E ele tinha usado meu isqueiro pra acender o seu cigarro. Estava lá, me observando com cara de chapado. Nem para oferecer uma brasa. Tinha alguma coisa errada. Muito errada. Quando me vi estava amassando meu cigarro na mão. O cheiro de tabaco não-incinerado misturado à sua fumaça de cravo me embrulhou o estômago.

- Uma parábola - pedi a Jesus. - Apenas uma. Acho que mereço, se você pretende que eu seja seu apóstolo.

- Não sou o deus das parábolas. Não mais. Agora sou o deus dos eufemismos...

Nem esperei-o terminar. Chutei o pé se sua banqueta para trás. Ele caiu para frente, o rosto atingindo em cheio o balcão. O banco rolou para longe. Ele, para perto. De mim. Agarrei seus cabelos e o ergui. Foi uma pancada feia. O lado esquerdo de seu rosto estava inchado e com certeza ficaria roxo. O lábio sangrava. Olhava-me apavorado, com aqueles olhos azuis irritantes. Tremia.

- Levanta! - berrei. - Levanta, seu merda!

- O que foi que eu fiz?!

Lágrimas.

- Nada. Esse é o problema. Não fez porra nenhuma. Não fez o que eu queria.

- E o que é que você queria?

- Agora não interessa mais o que eu queria. Interessa o que eu quero.

- E o que você quer?

- A outra face.

Esmurrei-o do lado direito. Ele caiu para trás, a cabeça quicando no piso como uma bola de boliche. Gemeu. Em meus dedos haviam tufos de seu cabelo agora não mais impecável. E seu sangue nos nós de minha mão direita.

- Messias é o meu caralho - rosnei em sua direção. Ele tentou rastejar para longe de mim. Escorregou. Não ia longe.

- Deixa ele! - gritou Zé às minhas costas. Parei, sem olhar para trás. Sabia que com certeza ele estava me apontando a medíocre vinte e dois que sempre deixava muquiada embaixo do balcão para emergências. Avaliei a situação por um instante. Não valia a pena. Sem me virar saquei a carteira, tirei uma nota e joguei-a no chão. Jesus continuava lá, sangrando e gemendo ridiculamente. Passei por ele sorrindo. Duvido que ele fosse esquecer de mim tão cedo.

- Escreve isso no teu evangelho, moleque - disse, o mais cheio de escárnio que consegui. Ele não respondeu. Apenas sorriu de volta. Um sorriso assustador. Um sorriso de cumplicidade. Me pegou de surpresa. Sem saber mais como lidar com aquilo saí do bar. Já na rua atirei seus cabelos na sarjeta e fui pra casa. Demorei a dormir.

É isso aí, doutor. De volta à estaca zero.

14.2.08

Sobre Amizades e Mulheres

Doutor,

permita-me citar outro doutor aqui, o cachorrão Dr. Love:

Caro FDP, amizade entre homem e mulher é uma brincadeira de fósforos. Hora se acende, hora se apaga.
A verdade é que a gente nunca segue a máxima de sua tia, avó, mãe, ou vizinha-varizenta-mal-amanda e sempre acaba brincando com fogo, mesmo sob a perspectiva nada lisonjeira de se mijar todo na cama de noite.

Brinca e se queima.

E a queimadura dói pra cacete.

Porque se tem coisa pior que perder uma pessoa por quem se tem sentimentos é perder uma amiga.

Mas não tem jeito. Como continuar sendo amigo de uma pessoa que você já se envolveu emocionalmente? Ou que continua envolvido? Como evitar um surto psicótico destrutivo se por acaso você testemunhar sua amiga se agarrando a outro cara numa balada? Como evitar os murros no espelho do banheiro, as falanges esfaceladas com os cacos, o prejuízo na conta, o vexame de ser arrastado pra fora do bar por um segurança três vezes maior que você?

Eu não sei.

Mas que me deu uma vontade imensa de quebrar alguma coisa agora, isso deu.

Me encontre amanhã nas páginas policiais, doutor.

31.1.08

Enxaquecas pré-carnavalescas

Doutor,

estou com dor de cabeça. Daquelas. Quase uma cefaléia. Sinto meu cérebro quicando em minha caixa craniana a cada batida de meu coração. Dói. Pra caramba. Parece que vou explodir. Só o ruído de meus dedos judiando do teclado parece uma escola de samba em meu cerebelo.

Falando em escola de samba, é chegada a hora de tirar a Lecy Brandão do formol. Filha da puta! Porra de país de merda que tem como festa oficial essa porcaria de ziriguindum, ticutuco, todas essas merdas. ODEIO carnaval. Meu sonho é ver algum dia algum sambódromo pegar fogo inteiro. Aí eu ia assistir. Todos aqueles idiotas morrendo carbonizados em suas fantasias altamente inflamáveis. Paetês em chamas. Plumas transformadas em labaredas. Explosões de peitos de silicone. Tochas homossexuais gritando como loucas até a morte agonizante, numa poça de sangue e órgãos que nem de longe lembram uma chuva de purpurina. Sangue, ossos e morte. Couro de gato retorcido. Carros alegóricos se tornando bólidos inflamados. Comissões de frente trombando-se em pânico. Pierrôs e Columbinas com reais motivos para chorar. Porta-bandeiras portando mortalhas. E a platéia despencando como gotas de termita em ignição, espatifando-se no asfalto numa explosão de fagulhas. Isso seria o carnaval perfeito pra mim. A isto eu assistiria com gosto.

E os bailes? Acho que até o próprio Demo acharia aquilo um inferno. Minha vontade é entrar lá com um carregamento de ácido sulfúrico travestido de tubos de lança-perfume. Os babacas iam lá, davam uma cafungada e em segundos seus órgãos internos seriam transformados em geléia. Vomitando as tripas. Cagando os próprios intestinos. Aos som de batucadas tribais e marchinhas cinqüentenárias. Foliões escorregando na sopa visceral de outros foliões, caindo e quebrando membros. Sendo pisoteados pela turba em pânico descontrolado. Sem ter pra onde fugir. Não era o caos que vocês buscavam? Taí, caos verdadeiro e justificado. Tão reclamando do quê?

Minha primeira briga foi num baile de carnaval. Eu era pequeno demais pra saber o que aquela porra significava, e deixei minha mãe me fantasiar. Acho que era de caubói.

Tá, eu espero você parar de rir. Não precisa disfarçar, não, pode rir à vontade.

Agora cala a boca senão enfio teus sapatos caros pela tua goela abaixo!

Então, estava eu lá, um caubói perdido no meio de um monte de crianças ranhetas com fantasias esdrúxulas se despedaçando a cada marchinha que saía da vitrola velha de minha avó. Em poucos minutos o lugar era de uma sujeira insuportável. Misture confetes, serpentinas, refrigerante, docinhos e salgadinhos mil, tudo pisoteado e arremessado de um lado pro outro no chão imundo. Nojento, nojento. Sentei num canto do salão e fiquei torcendo pra que aquilo acabasse logo. Mas não tem jeito. Mãe é aquela criatura filha da puta que gosta de torturar o rebento. Tratam os filhos como se fossem bonecas que respiram. Vestem-nos das maneiras mais ridículas possíveis. Transformam-nos em reflexos de suas próprias frustrações. Daí minha mãe veio e me puxou de volta pro inferno. Não dei dois passos e um idiotinha veio e me jogou um punhado de confetes bem no meio da boca. Engoli quase metade daquele papel higiênico sujo reciclado e picotado. Engasguei, cuspi e vomitei no meio do salão. Começou uma gritaria de mães tentando amenizar a bagunça que eu tinha criado, mas já era tarde demais.

Eu havia descoberto a violência.

Pulei em cima do moleque, batendo em sua cara o mais forte que eu conseguia. Espanquei-o sem perdão. Acho que quebrei seu nariz. E alguns dentes de leite. Ele chorava sangue e confetes. Tentaram separar a briga mas eu estava incontrolável. Arrastei o fedelho até a poça do meu vômito e esfreguei a cara dele nela. Chutei ainda sua cabeça duas vezes antes de conseguirem finalmente me tirar de lá. Minha mãe ficou duas semanas só repetindo "Ai, meu Deus, que vergonha!". Mas ela nunca mais me levou a outro baile de carnaval.

Não, doutor, não é por isso que eu odeio carnaval, não. Eu já odiava antes disso. Só não sabia exatamente porque. Desde então sempre que essa merda de festa começa eu simplesmente me tranco em algum lugar e desapareço da existência. Quatro dias de fuga desenfreada da realidade. Acredite, é melhor assim.

Na quarta estou de volta.

Mas só depois do almoço.

22.1.08

Imaturo

Doutor,

sou assim. Sou do jeito que me vendem. Sou uma besta para muitos. Cativante para poucos. Amargo por vocação e solitário por opção. Bagunçado, desorganizado, escrachado. Bebo demais. Uso drogas por prazer. Tomo tarja preta sem receita. Durmo pouco. Trepo com ou sem amor. Não faço distinção. Mas sempre com paixão. Pois não sou burocrático. Sou cínico. Revoltado. Sacrílego. Escroto.

Maldito.

Me apaixono estupidamente fácil. E sigo em frente mais fácil ainda, mesmo com a ferida aberta sangrando e expondo minhas entranhas ainda esfaceladas. Uma hemorragia ambulante. Mas com a cabeça erguida. Sigo em frente, pronto para a próxima decepção. Para o próximo tombo.

Sou o pesadelo nietzcheano de Jack.

Mas sou assim e quero que se foda a sua opinião. A opinião de qualquer um. Sou uma fuga de mim mesmo. Uma fuga alheia. A saída de emergência que dá invariavelmente num abismo. Há quem caia comigo. Há quem se acovarde com apenas um vislumbre e retorne ao labirinto escuro de sua própria mediocridade auto-infligida. Pouco me importa. Sofro sozinho. Mas livre.

Eu mesmo limpo minhas lágrimas, obrigado.

Limpo-as com o sangue que escorre de minhas mãos. E com um sorriso macabro estampado na face. Sem olhar pra trás. Sem arrependimento.

Por que, você me questiona?

Porque sou imaturo.

Voluntariamente imaturo.

E é assim que persevero.

Assim que sou.

Quem quiser que me compre.

Só não me alugue.

Isso nunca.

17.1.08

Balada de uma caipirinha

Doutor,

eu não deveria estar naquele lugar. Estava tudo errado. Lugar errado. Decoração errada. Iluminação errada. Música errada. Pessoas erradas. Tudo. E minha presença lá era o maior erro de todos. Como é que eu me deixei convencer a vir?

- Tá tudo bem?

Não, tá tudo errado. Não deu pra perceber pela minha cara, não? Não agüento mais isso. Quem estou enganando? Essa não é minha vida, não é o que eu gosto. Não sou eu aqui nesta mesa arrumadinha, limpinha, bonitinha, com estas pessoas fresquinhas, limpinhas, arrumadinhas, idiotinhas. A gola da camisa está pinicando meu pescoço. Odeio sapato social. E que merda de gosma é essa que você passou no meu cabelo?

- Mais cerveja, senhor?

Quero. Não! Espera. Chega de cerveja. Empapuçou. Preciso de algo mais forte. Dá aqui o cardápio. Puta bar caro do caralho! Assim não é possível. Tem que ter alguma coisa mais forte que cerveja a um preço que eu possa pagar. Calma, não vai embora. Aqui. Pronto. Me faz uma caipirinha.

- Claro, senhor. De quê?

Como é? Caipirinha. Não sabe o que é caipirinha? Como assim "de quê"? E você, tá rindo por quê? Acha engraçado um garçom que não sabe o que é uma caipirinha? Eu acho triste, isso sim. Babaca...

- Zê...

Me deixa! Olha cara, pedi uma caipirinha. Não dá pra ser mais direto que isso! O que mais você precisa saber?

- De vodca, saquê, rum, gim...

Como é que é? Esse cara tá me tirando. Eu pedi uma caipiroska? Ou uma caipiríssima? Não. Nada disso. Eu pedi uma caipirinha! Deixa eu ser mais claro: CAI-PI-RI-NHA. Entendeu agora? É com pinga, porra! Pinga! Cachaça! Cana! Mé! Água que a PORRA do passarinho não bebe! Saquê? Quem é que inventou essa merda? Caipirinha com saquê?

- Saiquirinha...

Pára! Não, aí já é demais! Saiquirinha? Isso é nome de bebida séria? Parece nome de suco de caixinha! Não, sem essa de saquê. Coisa de viado. É com pinga mesmo. Pinga.

- Muito bem. E com que fruta?

Isso é sério? É pegadinha? Cadê as câmeras? Como assim com que fruta? Eu não fui claro o suficiente? Você é gringo? Retardado? Bebe Diabo Verde no café da manhã? Com que fruta você acha que eu quero a PORRA da minha caipirinha? Hein? Adivinha?

- Bom, temos morango, abacaxi, kiwi, carambola, lima da pérsia, cupuaçu...

Cupuaçu? Que merda é essa? Não faço a menor idéia do que é cupuaçu! Isso é fruta? Me larga, porra! Será que chegamos a tal ponto nessa BOSTA de país onde nem mesmo uma caipirinha tem mais identidade? É a bebida nacional! Aposto que se eu fosse num bar na Tanzânia e pedisse uma caipirinha o garçom não ia ficar me azucrinando com essas perguntas cretinas!Limão, caralho! Limão! Sabe o que é limão? Aquela fruta verde que quando a gente chupa fica com a cara da tua mãe! Sabe?

- Caipirinha de pinga com limão. Perfeito.

Isso. E, por favor, não precisa falar desse jeito. Só "caipirinha" já basta. O próprio nome pressupõe pinga e limão. Não, eu tô mais calmo. Desculpe. Me desculpem. É que tem certas coisas que me tiram do sério. Não, eu tô melhor. Obrigado...

- Senhor?

Você tá aí ainda? O que foi agora?

- Açúcar ou adoçante?

Levantei e fui embora. Aí já era demais. Só me faltava agora tomar uma caipirinha diet! Não tem jeito. Não era meu lugar. Não era. Estava tudo errado. Está tudo errado. Comigo. Com o mundo. Depois reclamam quando alguém perde a cabeça e sai atirando em todo mundo na rua. Caipirinha com adoçante?! Sacrilégio! Esse mundo tá perdido.

Me deixa!

14.1.08

Sim, eu sou egoísta

Doutor,

éramos apenas eu e a televisão na madrugada. Eu assistindo a mim mesmo. Eu estava lá. Era eu. Sou eu? Quase. Bem quase. O ator não se parece nada comigo. É indubitavelmente mais bonito. Mas fora o físico todas as outras idiossincrasias estão lá. Todas. Eu assistindo a mim mesmo numa noite insone.

E era uma boa história.

Vendo-me de fora percebo que não tenho do que reclamar. Mesmo quando eu reclamo na tela vejo que são reclamações pueris. Bobagens que só servem para o roteiro seguir em frente. Crises medíocres que se resolvem com a geração de novas crises. Ganchos de vida. Coisas que fazem os capítulos correrem. A história continuar. Uma justificativa para a continuidade. Para alegria dos patrocinadores. Dos espectadores.

"Na terra dos preguiçosos o tempo prega peças em você.
Um dia se está sonhando.
No outro já é realidade.

Foi a melhor época de todas.
(Se ao menos alguém tivesse me avisado...)
Erros foram cometidos,
corações foram partidos,
licões difíceis foram aprendidas.
Minha família segue em frente sem mim,
Enquanto eu me afogo num oceano de bocetas insignificantes.

Não sei como cheguei aqui.
Mas aqui estou eu.
Há coisas que preciso entender.
Ao menos pelo bem dela.
O relógio está correndo.
A distância aumentando.

Ela não vai sempre me amar incondicionalmente."

(Como eu queria ter escrito isso!)

Apenas na madrugada solitária a televisão corre o risco de transmutar em espelho. Em quase-experiência de pré-morte. Ou pré-experiência de quase-morte. Tanto faz. Mas no final não há a solução final. Há outro capítulo ainda. Outra temporada talvez. Com sorte. Azar.

Olho de relance para o relógio. Três da manhã. Preciso dormir. Amanhã eu trabalho. Na tela eu durmo. Sozinho e cheio de pensamentos conflitantes. Na realidade perco o sono. O que acontecerá amanhã? Que crises irei contornar com meu humor ácido, meu sarcasmo incurável e um estranho carisma que faz com que as pessoas não saiam de perto, mesmo quando essa é a alternativa mais racional? Não entendo. Não racionalizo. Os saltos temporais não permitem. Nova situação. Nova crise. Novas soluções e resoluções que apenas geram novas crises.

Malditos fractais.

Sou eu e estou feliz em ser. Estranho isso? Claro que é. Especialmente pra mim. Algo de muito errado vai acontecer. Alguma hecatombe se prenuncia no horizonte. Não pode ser uma história tão boa. Algo precisa acontecer para estragar essa coerência. Bebo demais. Escrevo de menos. Magoo as pessoas que me importam. Mas de algum as coisas caminham prum rumo certo, uma solução satisfatória. Isso não pode ser assim. A vida não tem revisões de roteiro. Não tem coincidências coerentes permeadas de referências obscuras. Não sou eu. Não pode ser eu. O polegar sobre o botão emborrachado do controle remoto treme de leve. Desliga isso, Zebedeu. Não é você. Não pode ser.

Eis que então eu na tela falo comigo mesmo:

"Você reclama até de não ter do que reclamar."

Aperto o botão. A tela apaga. Agora sou só eu novamente. Com meus pensamentos de travesseiro.

Bosta de vida. Não serve nem para virar um filme. Apenas um seriado idiota. Apenas uma metalingüagem rala e egoísta.

Bosta de vida.

3.1.08

Palavras Suicidas

Doutor,

éramos apenas duas pessoas, deitados numa cama em um quarto pequeno demais para nós, mas grande o suficiente para se tornar um microverso particular. Uma entropia pessoal. Éramos apenas nós dois. E era o suficiente.

- Quer sair?

Nem fodendo. Não me imagino em nenhum outro lugar além desse onde eu gostaria de estar agora.

- Nem eu.

Continuamos abraçados. Olhando a parede. Em silêncio absoluto. Lá fora as primeiras explosões prenunciavam a revolução apocalíptica inevitável. Aqui dentro apenas nosso silêncio.

- Gostou do quarto?

É alto.

- Sabia que a maioria dos suicídios acontece em quartos de hotel?

Sabia. Já li esse gibi. E já me hospedei sozinho em quartos de hotel como esse.

- E por que será que é assim?

É simples. Primeiro tem o lance da sujeira. Ninguém gosta de bagunçar a própria casa. A maioria dos suicídios são sujos. Bala na cabeça. Pulsos cortados. Enforcamentos...

- Enforcamentos são sujos?

São. Nojentos. A pessoa perde o controle dos intestinos. Se caga toda. E ninguém gostaria de pendurar um lustre cagado em sua própria casa. Já num quarto de hotel ninguém liga. Na manhã seguinte a arrumadeira chega e tudo volta a sua ordem natural. O bom suicida não quer chamar a atenção. O gerente do hotel também não. É tudo muito simples, muito discreto, muito efetivo.

- Você fala como se já tivesse pensado nisso...

E você não? Quando se está num ambiente estéril como um quarto de hotel, sozinho e com mágoas para remoer esse pensamento é quase inevitável. Somos humanos. Guardamos coisas que não deveríamos. Tristezas. Arrependimentos. Feridas que só abrem quando estamos sozinhos. Abandonados à nossa própria sorte. Às nossas próprias reminiscências.

- Hum, adoro seu cafuné.

O segredo é não focar em um único ponto. Tem que variar. Explorar. Mexer em cada canto da cabeça até que nada fique incólume. Bagunçar. Aqui podemos. A arrumadeira vem de manhã.

- Haverá uma manhã?

Isso importa? Lá fora o mundo explode. Pode ser que vejamos o sol nascer novamente. Pode ser que não. Não importa. Não interessa. Interessa o agora. Interessa nós dois, aqui, juntos, sozinhos, isolados em nossos pensamentos compartilhados. Em nossas palavras suicidas. O resto é detalhe. Cenário. Foda-se o resto da humanidade. São todos figurantes. Extras. Descartáveis. São grafitos na parede, contornos semi-amorfos de criaturas que nunca deveriam ter existido. São sombras.

- Esse gibi eu também li.

São moldes em gesso de Pompéia. Reflexos de nada que voltaram ao pó. Uma nuvem de elétrons. Que orbitam involuntariamente a nossa volta. Somos o núcleo do universo. Um próton e um nêutron, abraçados e dançando uma dança eterna. Prestes a explodir numa hecatombe atômica sem precedentes na história do universo.

- Não pára...

Não paro. Não consigo parar. Está além de meu controle. De nosso controle. Inevitabilidade cósmica. Malditos fractais! É quase hora. É quase. Vem, me dá um beijo. Um último beijo. Misturemos nossos fluidos corporais. Saliva. Suor. Porra. Somos um só caldo primevo. Somos a massa primordial. Vem. Junte-se para que nos separemos em uma explosão. A única explosão que interessa nesse mar de explosões. Iniciemos a reação em cadeia que iniciará tudo mais. Vem. Agora. Vai...

- Mmmmmmm...

Lá fora as explosões se intensificam. É a hora zero. A hora da virada. A hora do recomeço. Elétrons colidem uns nos outros. Atraem-se e se repelem. O caos toma conta. O caos se torna realidade.

Aqui, no quarto de hotel, nós dois viramos um por um instante.

Então explodimos.

Mas nada muda no mundo.

Apenas aqui.