28.4.08

Arrotando Tutu

Doutor,

você bem sabe que não tenho e nunca tive pretensão nenhuma de ficar rico. Nenhum objetivo de angariar mais dinheiro que eu possa gastar. Sei bem de minhas capacidades econômicas e já a algum tempo assumi essa minha limitação. Sou pobre e sempre serei. Vivo num apartamento modesto, dirijo um carro velho e estropiado e me visto com roupas puídas e fora de moda (aliás, o que é moda?). Sou o que sou e não tenho vergonha nenhuma disso. Não tenho orgulho, mas tampouco tenho vergonha. Tenho o estilo condizente com os meus rendimentos e não mais que isso. Sou...

Ah, você entendeu!

O que EU não entendo é essa mania que o povo tem de aparentar mais grana do que realmente tem. Manja aquele negócio de comer tutu e arrotar caviar? Gastam tudo e um pouco apenas mais para ostentar o que não tem. Compram carrões em crediários gigantescos, apartamentos caríssimos com juros escorchantes, roupas de griffe pornograficamente caras, acessórios e balangandãs inúteis só para mostrar que são ricos. Quando não são. Mas não interessa o que se é. Interessa o que os outros acham que você é. A opinião alheia é mais importante que a própria. Realmente não consigo compreender.

Digo isso pois ontem eu estava voltando de um churrasco e, numa crise de bobeira, deu uma fome absurda. É, eu mais bebi que comi no churrasco (MUITO mais). Convenientemente estava passando ao lado de um McDonald's. Como estava com preguiça para cozinhar e sem saco para entrar em restaurante, embiquei no drive-thru. Na minha frente um baita carrão daqueles, sabe? É, porque eu mesmo não sei. Não entendo porra nenhuma de carros. Só sei que era daqueles que chamariam a atenção até em feiras de automóveis. Novo, limpinho, brilhante, coisa fina. De curiosidade olhei para o espelho retrovisor, só para sacar a cara do motorista. Era uma garota de, no máximo, uns 25 anos. Linda, toda arrumada e emperequetada. O braço esquerdo estava com ao menos umas 20 pulseiras com aparência de caras. O cabelo loiro indefectível, o que, num domingo a noite, é coisa rara de se ver. Rosto bem maquiado. Roupa impecável. Linda mesmo. Sério.

Mas como expliquei no primeiro parágrafo, tenho plena noção de meu estado atual e do que as pessoas pensam de mim. Sabia nesta primeira análise que uma mulher daquela só chegaria perto de mim se fosse pra dar esmola ou enxotar. Ou ignorar acintosamente. Aumentei o volume de meu rádio até que as caixas estourassem e estragassem completamente a música. A fila andou um pouco e chegou a vez da mini-perua-em-experiência fazer seu pedido. Fez. Forma de pagamento? A mão excepcionalmente manicurada entregou um cartão daqueles "platina" ou "diamante". Ela digitou a senha e ambos aguardamos. Meu estômago roncava. Cartão recusado. Deu outro. Mesmo ritual. Mesmo resultado. Mais um cartão, mais uma recusa. Outro! E mais um! Todos sumariamente recusados. O pessoal na fila começava a ficar impaciente. Buzinadinhas, "puta que os pariu" escapando pelas janelas abertas. Eu só observando enquanto a graça e a pose da vaquinha desapareciam aos poucos. Quando ela entregou um VALE-REFEIÇÃO vi que já não havia mais esperanças de redenção de sua pose. E pior: igualmente recusado!

Aí decidi interferir. Desci do carro e perguntei qual o motivo de tamanha demora. Ela engasgou ao tentar responder. O atendente ficou elegantemente mudo. Disparei: "Querida, se não tem como pagar, porque não sai fora? Tem gente com fome aqui querendo comer...". Ela nem se dignou a tentar responder. Sacou o celular e ligou pra alguém. Meu movimento motivou os motoristas atrás de mim a dispararem suas buzinas. Por conta do barulho ela teve que gritar no telefone: "Sou eu, benhÊÊ. Estou no Mac e não estou conseguindo passar nenhum cartão. Já tentei. Esse também. TODOS! Juro! Não sei, espera", e se dirigiu ao atendente: "Moço, aceita cheque?". Até eu, na minha ignorância completa, sei que o MacDonald's não aceita cheques faz tempo. O desespero e as buzinas iam a mil.

Eu podia ter feito tanta coisa ruim, doutor. Tanta crueldade. Podia deixá-la como uma galinha d'angola numa montanha russa desgovernada se eu quisesse. Claro que podia. Mas ao invés disso simplesmente perguntei ao atendente quanto tinha saído a compra dela. "Dezessete e cinqüenta". Saquei a carteira e paguei com uma nota de vinte. O cara não acreditou, mas confirmei com um gesto de cabeça. Vai nessa, pode cobrar. Me dá o troco.

Só aí que a perua-destronada percebeu o que estava acontecendo. Ela tentou dizer que não era pra eu fazer aquilo, que ela ia conseguir, essas coisas. Rejeitei magnanimamente seus argumentos com um sorriso. Ela não sabia onde enfiar a cara. Desligou o celular na cara do BenhÊÊ e me pediu o número de minha conta, que ela me pagaria aquilo amanhã mesmo, essas coisas. Recusei solenemente. Ao invés disso cheguei perto dela e soltei o golpe fatal:

- Relaxa, linda. Eu arroto tutu.

Voltei pro meu carro antes que ela conseguisse entender o que eu tinha dito. Duvido que algum dia entenda, mas tenho esperanças. Ela pegou sua sacola marrom e saiu fritando pneus. Fiz na seqüência meu pedido e fui pra casa comer.

Garanto uma coisa: foi o melhor Big Mac da minha vida.