23.2.07

Estilhaços

Doutor,

é triste olhar no espelho e ver meu rosto.

Desagradável.

É como se cada ruga, cada reentrância, cada cicatriz, cada fio de cabelo branco em minha têmpora contasse uma história melodramaticamente trágica. Uma história que nunca tem final feliz. E que fica ainda pior ao descobrir que tudo é por minha culpa. Por culpa de minha inação, de minha falta de culhão para tomar a decisão certa na hora certa. Cada marca profunda na minha pele espelha um vacilo, uma resolução covarde, uma cagada em minha vida.

Por que precisamos nos tornar escravos de nossas decisões? Por que nunca aparece alguém e te diz que esta ou aquela decisão específica vai esmerdear o resto de sua vida? Seria tão mais fácil acreditar que existe um velho barbudo sentado num cúmulo de algodão e que planeja a vida de cada um a seu bel prazer. Expiava a culpa por uma atitude equivocada que culminou em uma hecatombe incontrolável.

Mas não existe o tal velhinho. E a gente tem que aprender a lidar com as conseqüências das decisões que nossos cérebros limitados tomam. Por mais que doa, por mais que machuque. E não tem jeito, sempre que tomamos uma decisão crucial na vida ficamos imaginando como seria se tomássemos outra direção. Será que fizemos o certo? Como podemos ter certeza de que a merda que estamos afundando neste momento não é melhor do que uma possível caganeira na outra opção?

E como viver com essa dúvida?

No espelho estilhaçado meu rosto parece uma caricatura desenhada por um Picasso bêbado.

E os cacos fincados em minhas falanges doem.

Mas não mais do que minhas entranhas.

Merda de vida.

Merda.

15.2.07

Quase um dia de fúria.

Doutor,

eu tava na minha. Juro. Não mexi com ninguém, não atrapalhei nada. Continuava apenas um carrapato sugando meu salário miguado da empresa, gota a gota, imperceptível no meio da pelagem pubiana do meu departamento. Poderia permanecer lá indefinidamente, incólume nesta relação parasitária.

Mas não tem jeito. Não tem. É só você achar que finalmente alcançou uma zona de conforto e parece que o universo conspira para te arrancar dali. Universozinho do caralho...

Começou com uma bobagem. Alguém precisava de um favor. Todo mundo no departamento se fingiu de ocupado. Caiu no colo do idiota aqui. Mas era coisa simples, até eu conseguiria resolver sem problemas. Topei. Sempre me esqueço que a Primeira Guerra Mundial começou com um único tiro num arquiduque insignificante. Aposto que o imbecil que apertou o gatilho não tinha noção do tamanho da cagada que ele estava fazendo até que fosse tarde demais. Então, foi assim comigo.

O probleminha foi logo resolvido. Mas tal qual uma pedra cheia de limo que é movida de seu descanso milenar desvelou uma infinidade de baratas, percevejos, aranhas e toda sorte de inseto asqueroso e peçonhento que até o momento todos simplesmente ignoravam a existência. O probleminha se tornou de repente um furacão de merda. E é impressionante a velocidade que os não-envolvidos no problema desaparecem de uma hora para outra, deixando a bomba inteira para estourar na minha mão. Não tinha jeito. A arapuca fora armada. E eu estava preso nela.

Além de ter que agüentar gerentes e supervisores histéricos e incompetentes, tive ainda o prazer de ver o cliente envolvido na fuzarca, na figura de um casal para lá de caricato. Ele um tampinha atarracado com cara de fuinha e que só conseguia falar merda. Nada de útil saía daquela coisinha ridícula. Mas no meio do turbilhão até as imbecilidades são levadas em conta. O pânico elimina os filtros racionais. Tudo é incêndio. E aquele tampinha era um incendiário nato!

Já ela era um caso a parte. Alta, maior que eu, mas com aquelas caras de criança eternamente assustada. Sua voz era uma coisinha irritante, insuportável. Parecia uma criança de oito anos com problemas de dicção. E tinha uma tendência incontrolável para o desespero completo. E em seu desespero falava sem parar. Junte aquela vozinha insuportável (que faria qualquer sonho erótico se transformar num pesadelo pedófilo, independente do tamanho da cavala) com uma mania simplesmente irritante de entremear cada frase com um "ZÊ!" e imagine o meu desespero! Era algo como "Blá-blá-blá-ZÊ!-blá-blá-blá-ZÊ!-blá-blá-blá-ZÊ!-blá-blé-bló-ZÊ!".

Em pouco tempo todo aquele falatório desordenado simplesmente se transformou num ruído rosa. Algo mais irritante que microfonia, como aquele barulho de televisão fora de sintonia, mas no último volume. Comecei a suar frio. Não dava mais para pensar em qualquer tipo de solução para o problema original. Meus dedos tremiam. Meu estômago se revirou em duas cambalhotas que quase me fizeram despejar o almoço no teclado. E o ruído não parava. Não parava. NÃO PARAVA!

TUM! Soquei o tampo da mesa. O ruído não diminuiu. TUM! Bati de novo, com mais força. Minha mão doeu. Não adiantou. Comecei a murmurar entre os dentes rilhados: Cambada de filhos duma puta incompetentes... bláblábláZê!bláblabláZê!... Vou pegar essa sua cabecinha de pigmeu e enfiar no cu dessa girafa histérica... bláblábláZê!bláblabláZê!... Depois vou cobrir sua cara com tantos tapas que até minha mão vai sangrar... Zê!bláblábláZê!bláblabláZê!... Quebrar cada osso do teu corpo com as próprias mãos... bláblábláZê!bláblabláZÊ!!... Arrancar de uma vez a criança chorona de tuas cordas vocais... ZÊ!bláblábláZÊ!bláblabláZÊÊÊ!... Chutar teu corpo retorcido até não sobrar nada além da PORRA de uma POÇA de SANGUE e ÓRGÃOS ESFACELADOS, que vou ESPALHAR com TANTO GOSTO pela SALA INTEIRA que até o LEGISTA vai ter problemas para RECONHECER SEU CADÁVER COMO ALGO HUMANO!

Eu não tinha percebido que meu murmúrio havia se transformado em urros até que vi as caras de assustados do casal bisonho. Silêncio. Não desviei o olhar. Minha respiração estava acelerada, assim como meus batimentos cardíacos. Eles então pediram desculpas e se retiraram. Não os impedi. Fim da interferência. Um minuto para me acalmar e em mais cinco todos os problemas estavam resolvidos.

Na mesa do lado da minha uma morena me olhava como que lendo minha alma. Pisquei um olho confidente para ela. Ela me sorriu em retribuição.

No final das contas foi um dia bom, doutor.

Melhor do que a maioria.

2.2.07

Delírios Misantrópicos

Doutor,

olhe em volta. Não interessa onde esteja, se é no seu consultório, no ponto de ônibus ou parado no trânsito que não transita. Olhe, abra os olhos e veja. Esqueça os adereços. Veja as pessoas. Elas mesmo. Agora apure seu olfato. Sinta o cheiro da mediocridade, da insignificância destas máquinas processadoras de merda. Veja, cheire. Agora ouça. Sim, ouça. Escute o que eles tem a dizer. Este não é o seu trabalho? Escute a profusão de cretinices vomitadas por seus cérebros subutilizados. Racionalize a respeito. Veja eles de fora. Perca a curiosidade, enxergue-os como realmente são: uma multidão de hamsters treinados rodando suas rodinhas indefinidamente. Uma corrida para lugar algum. Uma corrida que se justifica em si própria. Saboreie agora a bílis subindo em sua garganta em conseqüência do inevitável asco. Ignore o tato. Você não quer tocar essas criaturas repugnantes. Lave as mãos obsessivamente e calce um par de luvas.

O mundo gira em volta de minha mesa. Gira como a roda do hamster. As pessoas correm de um lado para o outro e não saem do lugar. Vivem no ponto morto. Respiram seqüencialmente sem ao menos pensar a respeito. Movimento involuntário é ereção. É peido na madruga. Para respirar todos nós deveríamos pensar a respeito. Descobriríamos que só fazemos isso por medo. Medo de morrer. A máquina fabricante de merda não quer se tornar seu subproduto tão cedo. Inspira. Expira. Agora arrota.

Seres humanos são nojentos.

Você é nojento, assuma. Uma máquina que excreta muco, fezes e suor. Que liga palavras em frases mal feitas e frases em idéias idiotas e idéias em argumentos repetidos exalados por entre o vapor de sua saliva. Um papagaio com mais memória cognitiva. Bela merda, bela merda. Tó, um biscoito para você. Agora me conta uma piada suja.

Não lembra de nenhuma piada? Então inventa uma agora. Não consegue, não é? Quem inventa as piadas? Em algum lugar deve haver um celeiro com dois mil macacos datilógrafos. Não, eles não conseguiram reproduzir a obra completa de Shakespeare ainda. Mas já fabricam as piadas. Fabricam e as jogam em nosso celeiro. E nós as repassamos aleatoriamente, ferramentas para escancarar nossos defeitos mais óbvios. Somos roteadores de merdas atiradas por macacos datilógrafos com espírito crítico mais afiado que o nosso. E nós não estamos nos tornamos também uma legião de macacos datilógrafos? Saber usar um mouse não é vantagem para quem vem com polegares de fábrica. Quero ver você descascar uma banana com o pé. Isso sim é foda.

Darwin estava enganado. Se estivesse certo nós já estaríamos extintos há milênios. A criatura mais desprovida de ferramentas naturais de sobrevivência, mais propensa ao ócio que a maioria dos hibernantes, que dorme um terço da vida útil e dois da inútil. Que não tem couraça, pelagem, garras, presas ou visão infravermelha. Em algum momento alguém trapaceou e aqui estamos nós, seis bilhões de criaturinhas patéticas que se acham donos do mundo. O mundo nunca pediu por um dono. Muito menos seis bilhões. Essa pedra que circunda aquela bola de fogo é alheia a nossa presença. Só gira e gira em seu movimento centrífugo regular pois em algum momento uma série de coincidências a empurrou a isso. Está pouco se fodendo para as bactérias que povoam sua crosta.

O café tem gosto de derrota.

O que eu estou fazendo aqui?