15.2.07

Quase um dia de fúria.

Doutor,

eu tava na minha. Juro. Não mexi com ninguém, não atrapalhei nada. Continuava apenas um carrapato sugando meu salário miguado da empresa, gota a gota, imperceptível no meio da pelagem pubiana do meu departamento. Poderia permanecer lá indefinidamente, incólume nesta relação parasitária.

Mas não tem jeito. Não tem. É só você achar que finalmente alcançou uma zona de conforto e parece que o universo conspira para te arrancar dali. Universozinho do caralho...

Começou com uma bobagem. Alguém precisava de um favor. Todo mundo no departamento se fingiu de ocupado. Caiu no colo do idiota aqui. Mas era coisa simples, até eu conseguiria resolver sem problemas. Topei. Sempre me esqueço que a Primeira Guerra Mundial começou com um único tiro num arquiduque insignificante. Aposto que o imbecil que apertou o gatilho não tinha noção do tamanho da cagada que ele estava fazendo até que fosse tarde demais. Então, foi assim comigo.

O probleminha foi logo resolvido. Mas tal qual uma pedra cheia de limo que é movida de seu descanso milenar desvelou uma infinidade de baratas, percevejos, aranhas e toda sorte de inseto asqueroso e peçonhento que até o momento todos simplesmente ignoravam a existência. O probleminha se tornou de repente um furacão de merda. E é impressionante a velocidade que os não-envolvidos no problema desaparecem de uma hora para outra, deixando a bomba inteira para estourar na minha mão. Não tinha jeito. A arapuca fora armada. E eu estava preso nela.

Além de ter que agüentar gerentes e supervisores histéricos e incompetentes, tive ainda o prazer de ver o cliente envolvido na fuzarca, na figura de um casal para lá de caricato. Ele um tampinha atarracado com cara de fuinha e que só conseguia falar merda. Nada de útil saía daquela coisinha ridícula. Mas no meio do turbilhão até as imbecilidades são levadas em conta. O pânico elimina os filtros racionais. Tudo é incêndio. E aquele tampinha era um incendiário nato!

Já ela era um caso a parte. Alta, maior que eu, mas com aquelas caras de criança eternamente assustada. Sua voz era uma coisinha irritante, insuportável. Parecia uma criança de oito anos com problemas de dicção. E tinha uma tendência incontrolável para o desespero completo. E em seu desespero falava sem parar. Junte aquela vozinha insuportável (que faria qualquer sonho erótico se transformar num pesadelo pedófilo, independente do tamanho da cavala) com uma mania simplesmente irritante de entremear cada frase com um "ZÊ!" e imagine o meu desespero! Era algo como "Blá-blá-blá-ZÊ!-blá-blá-blá-ZÊ!-blá-blá-blá-ZÊ!-blá-blé-bló-ZÊ!".

Em pouco tempo todo aquele falatório desordenado simplesmente se transformou num ruído rosa. Algo mais irritante que microfonia, como aquele barulho de televisão fora de sintonia, mas no último volume. Comecei a suar frio. Não dava mais para pensar em qualquer tipo de solução para o problema original. Meus dedos tremiam. Meu estômago se revirou em duas cambalhotas que quase me fizeram despejar o almoço no teclado. E o ruído não parava. Não parava. NÃO PARAVA!

TUM! Soquei o tampo da mesa. O ruído não diminuiu. TUM! Bati de novo, com mais força. Minha mão doeu. Não adiantou. Comecei a murmurar entre os dentes rilhados: Cambada de filhos duma puta incompetentes... bláblábláZê!bláblabláZê!... Vou pegar essa sua cabecinha de pigmeu e enfiar no cu dessa girafa histérica... bláblábláZê!bláblabláZê!... Depois vou cobrir sua cara com tantos tapas que até minha mão vai sangrar... Zê!bláblábláZê!bláblabláZê!... Quebrar cada osso do teu corpo com as próprias mãos... bláblábláZê!bláblabláZÊ!!... Arrancar de uma vez a criança chorona de tuas cordas vocais... ZÊ!bláblábláZÊ!bláblabláZÊÊÊ!... Chutar teu corpo retorcido até não sobrar nada além da PORRA de uma POÇA de SANGUE e ÓRGÃOS ESFACELADOS, que vou ESPALHAR com TANTO GOSTO pela SALA INTEIRA que até o LEGISTA vai ter problemas para RECONHECER SEU CADÁVER COMO ALGO HUMANO!

Eu não tinha percebido que meu murmúrio havia se transformado em urros até que vi as caras de assustados do casal bisonho. Silêncio. Não desviei o olhar. Minha respiração estava acelerada, assim como meus batimentos cardíacos. Eles então pediram desculpas e se retiraram. Não os impedi. Fim da interferência. Um minuto para me acalmar e em mais cinco todos os problemas estavam resolvidos.

Na mesa do lado da minha uma morena me olhava como que lendo minha alma. Pisquei um olho confidente para ela. Ela me sorriu em retribuição.

No final das contas foi um dia bom, doutor.

Melhor do que a maioria.