2.7.08

Autossomia Dissociativa

Doutor,

a melhor maneira que encontrei de iniciar um de meus relatos semi-biográficos-calcados-no-absurdo sempre é localizá-lo em um bar. É, este é um daqueles. Tem quem goste, tem que odeie, tem quem está pouco se fodendo. Me incluo no último grupo. Então, estou num bar. A cena típica. Bunda no tamborete, cotovelos no balcão, uma cerveja amornando à minha frente. Imagine você mesmo a decoração e a música ambiente (embora eu sempre imagine um velhinho sentado em um piano de cauda tocando bossa nova, mas espero que Jung explique essa). Pouco importa. É aquele momento típico de reflexões incongruentes. Neste momento sento-me ao meu lado.

- Começou?

- Claro. Achou sinceramente que ia permanecer incólume nesta situação?

- Tinha esperanças.

- Já era.

Pedi um uísque. Espero que eu tenha dinheiro para pagar. A bebida chega e tomo um trago, estalando a língua. Aproveito e acompanho-me com um grande gole do chope morno. Sabia que ia precisar.

- É esquizofrenia ou múltiplas personalidades?

- Não sei. Pode ser uma reação ao álcool e os tarja pretas.

- Seria pedir demais uma simples overdose acidental?

- Claro.

Terminei o chope e empurrei o copo, indicando que queria um refil. Eu ia precisar, pois logo em seguida sento-me do meu outro lado.

- É uma convenção?

- Acho que não. Só se for de egos.

- Não tenho um ego tão grande assim.

- Tem. Um superego.

Peço um gin tônica. Por que fiz isso? Sempre odiei gin tônica!

- Não odeia, não. Pensa que odeia. Mas no fundo gosta.

- Acho que tenho que acreditar.

- Não, não tem.

- E o senhor, vai querer alguma coisa?

Levanto o rosto para xingar o garçom, mas o garçom sou eu.

- Até tu, brucutu?

- Hein?

- Eles eu até esperava. Mas e você?

- Sou apenas uma auto-referência egomaníaca. Vai beber o que?

- Tem cianureto?

Eu ri. Quatro vezes. E me servi mais um chope.

- Qualé o papo?

- Quem começa?

- Quer um guardanapo?

- Pra quê tantas perguntas?

Observo uma bunda apertada numa calça jeans passar enquanto checo as horas, lavo copos e sinto vontade de fugir correndo.

- É só comer e jogar fora.

- É só se degradar por conta de uma boceta insignificante.

- O segredo da vida está no colo de um útero. Ou no fundo de um copo de tequila.

- Ai, meu saco...

- Que foi?

- Ele quer que falemos alguma coisa útil ou pulemos fora.

- Odeio usar gravata borboleta.

- Odeio vocês.

- Claro que odeia.

- Pega o telefone e liga pra alguém. Alguém especial. Alguém que mereça dividir sua vida com você.

- Essa pessoa não existe.

- Não ouça o que ele diz. Você sabe que existe.

- Eu já encontrei a pessoa ideal...

- Ninguém está falando com você. Traz mais uma dose.

- Imagina você estrangulando a vida dessa vadia pouco a pouco. Beijando seu último suspiro.

- Não tem suspiros. Serve amendoim?

- E qual o sentido de matá-la? O que eu ganharia com isso?

- O que você perderia?

- Viu? Até ele concorda.

- Psicologia reversa.

Bato a cabeça no balcão. Quatro vezes. Quando levanto ainda estou lá, me cercando.

- Cadê a porra da minha cerveja?

- E meu uísque?

- E meu gin?

Eu fico meio perdido. Daí arranco a gravata borboleta e confidencio comigo mesmo:

- Nada disso é necessário. Você sabe o que é necessário. Sabe o que tem que fazer. Pare de dar ouvido a contradições. Levante e aja. Chega de se dissociar. Seja. Chafurdar em autocomiseração não adianta nada. Você é um bosta, mas até aí todos somos. Levanta essa cabeça e manda todo mundo tomar no cu. Agarre a vida pelo pescoço. Olhe para ela bem no fundo de seus olhos e beije-a na boca como se fosse a última vez. Talvez seja. Nunca se sabe. Não racionalize. Não perca tempo com elocubrações. Cale-se e ouça. Olhe em volta. Você está sozinho. Sempre esteve e sempre estará. É com você. Foda-se. Enfie cerveja, uísque e gin no rabo se quiser. Não adiantará nada e não trará sentido algum. E para mim chega. Estou fora.

- Eu também.

- E eu.

Partimos. Um para cada lado. Só eu fiquei.

- E quem vai me servir mais um chope, cáspite?