14.1.08

Sim, eu sou egoísta

Doutor,

éramos apenas eu e a televisão na madrugada. Eu assistindo a mim mesmo. Eu estava lá. Era eu. Sou eu? Quase. Bem quase. O ator não se parece nada comigo. É indubitavelmente mais bonito. Mas fora o físico todas as outras idiossincrasias estão lá. Todas. Eu assistindo a mim mesmo numa noite insone.

E era uma boa história.

Vendo-me de fora percebo que não tenho do que reclamar. Mesmo quando eu reclamo na tela vejo que são reclamações pueris. Bobagens que só servem para o roteiro seguir em frente. Crises medíocres que se resolvem com a geração de novas crises. Ganchos de vida. Coisas que fazem os capítulos correrem. A história continuar. Uma justificativa para a continuidade. Para alegria dos patrocinadores. Dos espectadores.

"Na terra dos preguiçosos o tempo prega peças em você.
Um dia se está sonhando.
No outro já é realidade.

Foi a melhor época de todas.
(Se ao menos alguém tivesse me avisado...)
Erros foram cometidos,
corações foram partidos,
licões difíceis foram aprendidas.
Minha família segue em frente sem mim,
Enquanto eu me afogo num oceano de bocetas insignificantes.

Não sei como cheguei aqui.
Mas aqui estou eu.
Há coisas que preciso entender.
Ao menos pelo bem dela.
O relógio está correndo.
A distância aumentando.

Ela não vai sempre me amar incondicionalmente."

(Como eu queria ter escrito isso!)

Apenas na madrugada solitária a televisão corre o risco de transmutar em espelho. Em quase-experiência de pré-morte. Ou pré-experiência de quase-morte. Tanto faz. Mas no final não há a solução final. Há outro capítulo ainda. Outra temporada talvez. Com sorte. Azar.

Olho de relance para o relógio. Três da manhã. Preciso dormir. Amanhã eu trabalho. Na tela eu durmo. Sozinho e cheio de pensamentos conflitantes. Na realidade perco o sono. O que acontecerá amanhã? Que crises irei contornar com meu humor ácido, meu sarcasmo incurável e um estranho carisma que faz com que as pessoas não saiam de perto, mesmo quando essa é a alternativa mais racional? Não entendo. Não racionalizo. Os saltos temporais não permitem. Nova situação. Nova crise. Novas soluções e resoluções que apenas geram novas crises.

Malditos fractais.

Sou eu e estou feliz em ser. Estranho isso? Claro que é. Especialmente pra mim. Algo de muito errado vai acontecer. Alguma hecatombe se prenuncia no horizonte. Não pode ser uma história tão boa. Algo precisa acontecer para estragar essa coerência. Bebo demais. Escrevo de menos. Magoo as pessoas que me importam. Mas de algum as coisas caminham prum rumo certo, uma solução satisfatória. Isso não pode ser assim. A vida não tem revisões de roteiro. Não tem coincidências coerentes permeadas de referências obscuras. Não sou eu. Não pode ser eu. O polegar sobre o botão emborrachado do controle remoto treme de leve. Desliga isso, Zebedeu. Não é você. Não pode ser.

Eis que então eu na tela falo comigo mesmo:

"Você reclama até de não ter do que reclamar."

Aperto o botão. A tela apaga. Agora sou só eu novamente. Com meus pensamentos de travesseiro.

Bosta de vida. Não serve nem para virar um filme. Apenas um seriado idiota. Apenas uma metalingüagem rala e egoísta.

Bosta de vida.