Doutor,
éramos apenas duas pessoas, deitados numa cama em um quarto pequeno demais para nós, mas grande o suficiente para se tornar um microverso particular. Uma entropia pessoal. Éramos apenas nós dois. E era o suficiente.
- Quer sair?
Nem fodendo. Não me imagino em nenhum outro lugar além desse onde eu gostaria de estar agora.
- Nem eu.
Continuamos abraçados. Olhando a parede. Em silêncio absoluto. Lá fora as primeiras explosões prenunciavam a revolução apocalíptica inevitável. Aqui dentro apenas nosso silêncio.
- Gostou do quarto?
É alto.
- Sabia que a maioria dos suicídios acontece em quartos de hotel?
Sabia. Já li esse gibi. E já me hospedei sozinho em quartos de hotel como esse.
- E por que será que é assim?
É simples. Primeiro tem o lance da sujeira. Ninguém gosta de bagunçar a própria casa. A maioria dos suicídios são sujos. Bala na cabeça. Pulsos cortados. Enforcamentos...
- Enforcamentos são sujos?
São. Nojentos. A pessoa perde o controle dos intestinos. Se caga toda. E ninguém gostaria de pendurar um lustre cagado em sua própria casa. Já num quarto de hotel ninguém liga. Na manhã seguinte a arrumadeira chega e tudo volta a sua ordem natural. O bom suicida não quer chamar a atenção. O gerente do hotel também não. É tudo muito simples, muito discreto, muito efetivo.
- Você fala como se já tivesse pensado nisso...
E você não? Quando se está num ambiente estéril como um quarto de hotel, sozinho e com mágoas para remoer esse pensamento é quase inevitável. Somos humanos. Guardamos coisas que não deveríamos. Tristezas. Arrependimentos. Feridas que só abrem quando estamos sozinhos. Abandonados à nossa própria sorte. Às nossas próprias reminiscências.
- Hum, adoro seu cafuné.
O segredo é não focar em um único ponto. Tem que variar. Explorar. Mexer em cada canto da cabeça até que nada fique incólume. Bagunçar. Aqui podemos. A arrumadeira vem de manhã.
- Haverá uma manhã?
Isso importa? Lá fora o mundo explode. Pode ser que vejamos o sol nascer novamente. Pode ser que não. Não importa. Não interessa. Interessa o agora. Interessa nós dois, aqui, juntos, sozinhos, isolados em nossos pensamentos compartilhados. Em nossas palavras suicidas. O resto é detalhe. Cenário. Foda-se o resto da humanidade. São todos figurantes. Extras. Descartáveis. São grafitos na parede, contornos semi-amorfos de criaturas que nunca deveriam ter existido. São sombras.
- Esse gibi eu também li.
São moldes em gesso de Pompéia. Reflexos de nada que voltaram ao pó. Uma nuvem de elétrons. Que orbitam involuntariamente a nossa volta. Somos o núcleo do universo. Um próton e um nêutron, abraçados e dançando uma dança eterna. Prestes a explodir numa hecatombe atômica sem precedentes na história do universo.
- Não pára...
Não paro. Não consigo parar. Está além de meu controle. De nosso controle. Inevitabilidade cósmica. Malditos fractais! É quase hora. É quase. Vem, me dá um beijo. Um último beijo. Misturemos nossos fluidos corporais. Saliva. Suor. Porra. Somos um só caldo primevo. Somos a massa primordial. Vem. Junte-se para que nos separemos em uma explosão. A única explosão que interessa nesse mar de explosões. Iniciemos a reação em cadeia que iniciará tudo mais. Vem. Agora. Vai...
- Mmmmmmm...
Lá fora as explosões se intensificam. É a hora zero. A hora da virada. A hora do recomeço. Elétrons colidem uns nos outros. Atraem-se e se repelem. O caos toma conta. O caos se torna realidade.
Aqui, no quarto de hotel, nós dois viramos um por um instante.
Então explodimos.
Mas nada muda no mundo.
Apenas aqui.
3.1.08
Palavras Suicidas
Esporrado por Zebedeu às 09:03
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