3.1.08

Palavras Suicidas

Doutor,

éramos apenas duas pessoas, deitados numa cama em um quarto pequeno demais para nós, mas grande o suficiente para se tornar um microverso particular. Uma entropia pessoal. Éramos apenas nós dois. E era o suficiente.

- Quer sair?

Nem fodendo. Não me imagino em nenhum outro lugar além desse onde eu gostaria de estar agora.

- Nem eu.

Continuamos abraçados. Olhando a parede. Em silêncio absoluto. Lá fora as primeiras explosões prenunciavam a revolução apocalíptica inevitável. Aqui dentro apenas nosso silêncio.

- Gostou do quarto?

É alto.

- Sabia que a maioria dos suicídios acontece em quartos de hotel?

Sabia. Já li esse gibi. E já me hospedei sozinho em quartos de hotel como esse.

- E por que será que é assim?

É simples. Primeiro tem o lance da sujeira. Ninguém gosta de bagunçar a própria casa. A maioria dos suicídios são sujos. Bala na cabeça. Pulsos cortados. Enforcamentos...

- Enforcamentos são sujos?

São. Nojentos. A pessoa perde o controle dos intestinos. Se caga toda. E ninguém gostaria de pendurar um lustre cagado em sua própria casa. Já num quarto de hotel ninguém liga. Na manhã seguinte a arrumadeira chega e tudo volta a sua ordem natural. O bom suicida não quer chamar a atenção. O gerente do hotel também não. É tudo muito simples, muito discreto, muito efetivo.

- Você fala como se já tivesse pensado nisso...

E você não? Quando se está num ambiente estéril como um quarto de hotel, sozinho e com mágoas para remoer esse pensamento é quase inevitável. Somos humanos. Guardamos coisas que não deveríamos. Tristezas. Arrependimentos. Feridas que só abrem quando estamos sozinhos. Abandonados à nossa própria sorte. Às nossas próprias reminiscências.

- Hum, adoro seu cafuné.

O segredo é não focar em um único ponto. Tem que variar. Explorar. Mexer em cada canto da cabeça até que nada fique incólume. Bagunçar. Aqui podemos. A arrumadeira vem de manhã.

- Haverá uma manhã?

Isso importa? Lá fora o mundo explode. Pode ser que vejamos o sol nascer novamente. Pode ser que não. Não importa. Não interessa. Interessa o agora. Interessa nós dois, aqui, juntos, sozinhos, isolados em nossos pensamentos compartilhados. Em nossas palavras suicidas. O resto é detalhe. Cenário. Foda-se o resto da humanidade. São todos figurantes. Extras. Descartáveis. São grafitos na parede, contornos semi-amorfos de criaturas que nunca deveriam ter existido. São sombras.

- Esse gibi eu também li.

São moldes em gesso de Pompéia. Reflexos de nada que voltaram ao pó. Uma nuvem de elétrons. Que orbitam involuntariamente a nossa volta. Somos o núcleo do universo. Um próton e um nêutron, abraçados e dançando uma dança eterna. Prestes a explodir numa hecatombe atômica sem precedentes na história do universo.

- Não pára...

Não paro. Não consigo parar. Está além de meu controle. De nosso controle. Inevitabilidade cósmica. Malditos fractais! É quase hora. É quase. Vem, me dá um beijo. Um último beijo. Misturemos nossos fluidos corporais. Saliva. Suor. Porra. Somos um só caldo primevo. Somos a massa primordial. Vem. Junte-se para que nos separemos em uma explosão. A única explosão que interessa nesse mar de explosões. Iniciemos a reação em cadeia que iniciará tudo mais. Vem. Agora. Vai...

- Mmmmmmm...

Lá fora as explosões se intensificam. É a hora zero. A hora da virada. A hora do recomeço. Elétrons colidem uns nos outros. Atraem-se e se repelem. O caos toma conta. O caos se torna realidade.

Aqui, no quarto de hotel, nós dois viramos um por um instante.

Então explodimos.

Mas nada muda no mundo.

Apenas aqui.