12.6.08

O Último Poema

Doutor,

peço relutantemente desculpas pelo texto incoerente da madrugada passada. Foi escrita sob o efeito de psicotrópicos legais e ilegais misturados a um filme sobre anões e o dia dos namorados.

Tá, pode fechar a boca agora. Seu queixo deve ter caído no umbigo, né? Limpa a baba. Velho babão é nojento. Ainda mais com esse seu cavanhaque ridículo.

O senhor bem sabe que não sou ligado a datas ou tradições. Estou pouco me fodendo para páscoa, natal ou qualquer feriado de merda como estes. Só curto a folga. É um domingo de brinde, nada mais. Sem significados ou espíritos presentes, passados ou, deus me livre, futuros. Também não ligo a mínima para feriados comerciais. Dia das mães, pais, crianças, sogras, papagaio, lontra, orgasmo...

Mas não o dia dos namorados.

Não no sentido que meus detratores devem estar resmungando resignados neste momento. Não no senso romântico. Sei lá. Me faz mal. Se tenho com quem passar esse dia eu simplesmente desapareço. Se não tenho me afundo num anonimato seguro em minha toca hermética. Telefone fora do gancho, internet desconectada, celular morto. Não quero ninguém, não desejo ninguém. Só quero ficar sozinho e celebrar minha liberdade egoísta.

Claro que não foi sempre assim. Como todo imbecil que possui um badalo útil entre as pernas já fui um babaca iludido à procura da tampa de minha panela suja de vômito. O chinelo puído pra esfregar meus pés fedorentos. Alguém pra chamar de... Vou parar antes de declamar Wando. Você entendeu. Qualquer um entenderia.

Não interessa quem ela era, como nos conhecemos, como era seu corpo, como ela gemia enquanto me chupava, o jeito como arranhava minhas costas quando gozava, o... Caralho! Não, ela não tinha caralho. Droga, embananei tudo. Foco, Zebedeu, foco!

O que interessa é que eu estava perdido. Bobo mesmo, sabe? Sorrindo pra qualquer bobagem e pensando no, deus me livre, futuro. Planos, doutor, eu fazia planos! Sim, não é uma projeção. Aconteceu mesmo. Paixão de moleque, claro, mas aconteceu.

O quê? Ah, o dia dos namorados, claro. Calma. Tinha um detalhe importante. Ela morava longe pra burro. Tipo uns 1.200km de distância. E ainda não existia internet. E interurbano era caro demais pra desperdiçar com namoricos. Era tudo na base de cartas (pois é...) e visitas mensais. Ficamos assim um ano e meio. Foda. Era complicado pra cacete viver daquela maneira, mas eu estava disposto a qualquer sacrifício. Trouxa, idiota, cretino, pastelão, mocorongo, debilóide!

Com a aproximação do dia dos namorados pintou a idéia de um presente originalmente cafona. Acionei meus contatos em sua cidade e consegui providenciar o envio de um bouquet (buquê é muito ralé) de rosas vermelhas com um cartão com um poema de meu próprio punho para sua casa.

[Pausa para que leitoras incautas recuperem o fôlego]

Lindo isso, né? O doutor sabe, no fundo sou um romântico enrustido. Mas depois daquele dia dos namorados eu apenas enrusti essa faceta um pouco mais. Bem mais. A encomenda chegou como planejado, logo de manhã, antes de ela ir para a faculdade. Ansioso como uma bichinha chiliquenta fiquei ao lado do telefone esperando sua ligação. Não teve suspense inútil, não teve ataque de pânico, nada disso. Foi perfeito. O telefone tocou no horário planejado. Era ela. "Oi, gostou das flores?", "Adorei, Zê, mas...", "Mas?", "A gente precisa conversar...".

O resto é bem óbvio, né? Não quero entrar em detalhes. Não porque doa. O doutor sabe que dor não me incomoda, mesmo que traumática. Aconteceu como aconteceu com todo mundo ao menos uma vez na vida. A primeira de muitas, marcante apenas pelo fato de ter sido a primeira. Nada demais a não ser por um detalhe. Uma epifania tardia causada por aquele prosaico e clichê momento.

Anos depois, quando as experiências e decepções subseqüentes já não era mais tão intensas, percebi que aquele foi um momento libertador. Formador de caráter. Um caráter distorcido e repugnante, mas meu. Eu era livre. Eu sou livre. E escolhi como dia para celebrar esta liberdade o exato dia que a garanti involuntariamente. Do dia que escrevi meu último poema.

E foi isso, doutor.

Com licença que preciso recarregar meu copo.

Um brinde.

Não a você, doutor.

Não a você.