24.12.06

Antevespertina

Doutor,

não era para acontecer. Mas fomos forçados onomatopeicamente a nos comunicar. O chique-chieque de seu isqueiro sem gás estava interferindo em minha meditação meditabunda. Alcancei meu isqueiro sobre o balcão e empurrei-o para ela.

- Obrigada.

De nada. Era pra ficar nisso. Mas não tinha jeito. É o lance dos vasos comunicantes, saca? Eu vazio. Ela até a boca. E transbordou.

- Odeio o Natal.

Hum. Mais uma. Sou pára-raios de pirado.

- Desculpa.

Eu quem peço desculpas. Não percebi que estava falando. Às vezes acontece. Aconteceu. Aliás, está acontecendo. Garçom? Dá um chope pra ela por minha conta. Ainda bem que não tenho que me preocupar em gastar o décimo terceiro em ceia ou presente.

- Brigada.

Esquece. Agora por que alguém tão bonita não gosta do natal? Eu tenho todo o direito. Sou feio, amargo e anti-social. Mas se eu fosse uma mulher com este corpão com certeza não estaria sozinho num bar falando comigo.

- Antevéspera de Natal é pior que véspera. É uma porcaria de expectativa que te fode.

É só uma data. Podia ser qualquer uma. Convenções, convenções. Quem precisa delas? Qual é o galho? Seja sincera.

- Ele tinha que ser casado, porra?

Taí. Tava demorando pra abrir o jogo. Coisa mais patética um mulherão desses se perdendo por um babaca casado. Tanto homem por aí. Qualé, bonitona? Tá precisando se valorizar um pouco mais...

- A esta hora deve estar lá, dormindo abraçado com a vaca. Bobear tá dando uma trepadinha natalina.

Mulher casada não trepa no natal. Está mais preocupada com a ceia, com os parentes, com os filhos, com o peru errado, essas coisas. Acho que todas as mulheres casadas do mundo menstruam no natal. Relaxa. Aliás, não tem por que você ter ciúmes da oficial. Deixa de ser besta.

- Eu sei que é bobagem. Mas o que eu posso fazer? Ele... Caralho, nem sei o que ele tem. Olha pra mim: você acha que eu preciso disso?

Claro que não. Nem disto nem daquilo. Mas quem sou eu para julgar?

- Onde eu estava com a cabeça? Ele me enrolou direitinho. Só abriu o jogo depois que já tinha me ganhado. Justo eu, que achava que nunca ia cair numa dessas! Burra, burra!

Garçom! Traz logo mais dois que a conversa vai ser longa.

- Era perfeito demais pra não dar merda. Bonito demais, rico demais. tinha que ter defeito. Como eu não imaginei que um cara desses não estaria comprometido? É o que dá acreditar em dádiva, em presente dos céus. Presente não vem de graça. Tem que ter um preço. Tem que ceder um naco da tua alma!

Uma alma que eu destrincharia com prazer. Naco por naco. O primeiro seria a língua. Alma tem língua? Pois se tivesse eu laberia tua alma.

- Depois ele veio com um papinho de aranha. "Tenho que te contar uma coisa...". "O quê?". "Sou casado". "Como é?". "Sou casado.". E o que eu fiz? Dei mais uma. Com gosto. Caralho...

Ah, as lágrimas da culpa. Tão azedas. Tão abundantes. Toma um guardanapo. Essas lágrimas podem corroer o tampo do balcão.

- Brigada. Olha, desculpa, você não tem nada a ver com isso...

Relaxa.

- ... mas o lance é que eu tava precisando desabafar com alguém. Garçom, traz mais um chope pra ele. Desta vez eu pago.

Eu aceito. Certas ações clamam compensações. Mas sinto que preciso deixá-la devendo mais um pouco. Para cobrar depois.

- O pior é que a gente se vê todo dia. Ele é cliente da firma, aparece direto. Quando estamos juntos é como se não existisse mais ninguém no mundo. Ah, eu faço qualquer coisa por ele. Qualquer coisa! E ele por que não larga a mulher de uma vez? Por que ele não aceita que é feliz comigo e não com ela?

E por que você não fala isso pra ele? Já sei, para não ouvir a resposta que sabe que ele vai dar. Que não pode largar a mulher agora, que a situação não é propícia, essas merdas. Aceita, lindona, o cara tá na melhor situação possível. Por que ele vai jogar tudo pro alto por causa de uma coisa que ele já tem?

- Eu não sei mais o que fazer.

Eu sei. Viro o chope com gosto. Puxo a comanda e me levanto. Ela nem nota, perdida nas bolhas de seu copo. Toco seu ombro. Sussurro em seu ouvido. No próximo encontro leva uma faca. Corta o pau dele fora. Faz ele ver. Depois leva ele pro hospital e pede para fazerem um reimplante. E some da vida dele. Some da tua vida. Se mata, se tiver coragem. Este é meu presente de natal pra você. Um inspiração.

- Tchau, moço. E obrigada por tudo.

De nada, lindona. De nada.

Este natal promete, doutor.