2.1.07

Desjejum dos perdedores

Doutor,

certa vez tive algo que, sob certo ponto de vista menos cínico, poderia muito bem ser considerado um amigo. Ou o mais próximo que se pode chegar de um. Amigo é uma pessoa que pode ficar ao teu lado indefinidamente sem que seja preciso trocar uma palavra. Amigo é aquela pessoa que não incomoda. E o Truta era assim.

Não, não era apelido, era sobrenome mesmo. Não lembro de seu nome, só lembro que começava com K e era bem incomum. Por isso todo mundo o chamava de Truta. Claro que esse mundo era formado por mim e pelo Zé, o barman, mas o Zé nunca foi realmente nosso amigo. Ele só estava lá para nos servir. Aliás, duvido que seu nome fosse realmente Zé, mas o cara era garçom a tanto tempo que já havia perdido todo o culhão necessário para nos contradizer. Era uma máquina de atender pedidos. De vez em quando soltava uns comentários genéricos, um “Pois é...” ou “Sabe como é...”, sem nunca dar uma opinião concreta a respeito de nada. Mas foda-se o Zé. Queria falar do Truta.

Truta era um filósofo. Um péssimo filósofo. Nem ao menos um filósofo esforçado ele era. Caso não saiba, filósofo é um cara que faz um bocado de perguntas óbvias que inexplicavelmente ninguém sabe como responder. Nem eles. E o Truta era assim. Ele escrevia histórias ruins baseadas em suas filosofias deturpadas. Eram tão ruins que nem graça tinham. Eram histórias meio assustadoras, mas não daquelas que te deixam arrepiado. Elas eram tão desconcertantes que você fazia questão de não pensar mais a respeito das questões levantadas sob o risco de enlouquecer completamente. Não contei? Truta era louco.

Lembrei dele pois a última vez que nos vimos foi num reveillón. Não lembro de que ano, mas faz mais de uma década. Ele estava estranhamente sóbrio naquele dia. Os cabelos grisalhos não estavam tão desgrenhados, a barba estava feita. Só uma coisa não tinha mudado: aquelas repugnantes canelas finas cheias de veias varicosas que ele fazia questão de exibir com as calças pula-brejo que sempre usava. Até me desejou feliz ano novo, o que era pra lá de estranho para uma pessoa que contava o tempo através de um calendário próprio, pois ele achava que o Papa Gregório tinha errado feio. No calendário de Truta os meses tinham todos vinte e oito dias e cada mês tinha um nome impronunciável. Eu adorava perguntar a ele qual era o dia, só para ouvi-lo dizer, sem pestanejar, algo como “Hoje é o décimo terceiro dia de Zimbalatronixtre. O ano é oito mil setecentos e vinte e sete, se contarmos a partir do expurgo”. Mas naquela noite ele cedeu às convenções. Naquele dia ele parecia realmente humano. Ou quase.

– Eu te concedo um desejo de ano novo – me disse assim, à queima roupa.

– Qualé, Truta?

– Qualquer um. O que você quiser. Eu te concedo.

Não estava assim tão a fim de embarcar em sua viagem. Lá fora o mundo espoucava em milhões de cores enquanto um bando de imbecis se fantasiava de fantasmas ou mães de santo, se abraçando como se a virada cronológica trouxesse uma solução imediata a todos os problemas individuais e coletivos. Um segundo e pumba!, tudo resolvido, ano novo, vida nova, mundo novo. O balde de água fria só viria no dia primeiro de janeiro, quando todo mundo percebesse, durante a inevitável ressaca, que continuava tudo a mesma merda. Era o desjejum dos perdedores. Resumi isso em meu pedido:

– Eu só quero mais um chope.

Ele, claro, não se satisfez.

– Não seja materialista. Não seja modesto. Não seja um idiota. Vamos, quantas vezes alguém te concedeu um desejo, qualquer desejo, seu maior desejo, o desejo de sua vida? Vamos, me surpreenda. Seja ambicioso. Peça o que quiser e eu te dou. Né não, Zé?

– Sabe como é...

Truta quase não tinha onde cair vivo. Ele não ganhava xongas por seus textos. Para poder se alimentar e alimentar seu periquito de estimação (que ele mantinha apenas para saber com alguma antecedência quando o ar se tornasse, segundo suas próprias previsões, inevitavelmente irrespirável) ele instalava janelas anti-ruído. E era um péssimo instalador.

– Tá. Então que tal satisfazer todas as misses do universo? Que tal a Paz Mundial?

– É o que você realmente quer?

– Não.

– Ainda bem. O mundo seria um lugar terrivelmente chato para se viver se não corrêssemos o risco de morrer violentamente a qualquer momento.

Como eu disse, um péssimo filósofo.

– Vamos lá – insistiu ele. – Pense. Você é capaz de fazer isso. É o único ser do universo que tem livre arbítrio. Você é o Adão. Pense, pense e peça. O que quiser eu faço acontecer. Você não tem nenhum desejo imediato?

– Porra, Truta, eu tenho um milhão de desejos...

– Nomeie apenas um. Apenas o maior de todos.

Não estava fácil manter aquele papo. Eu estava prestes a xingá-lo. Amigo é aquele que você chama de filho da puta e recebe um abraço em retribuição. O Truta era assim. Não o xinguei pois não tava no clima de abraço.

– Sei lá, Truta. Esquece, cara, não quero nada, não.

– Então você abre mão da oportunidade de ter seu maior desejo realizado?

Saco.

– É isso aí. Não quero nenhum desejo meu realizado.

– E por que? Pensa direito na resposta.

Eu não tava a fim de pensar. Não enquanto todo mundo comemorava. Odeio quando todo mundo fica feliz. Fiquei quieto e bebi meu chope. Acho que ele entendeu isso como uma meditação e finalmente sentou do meu lado.

– Você sempre me surpreende – disse, abrindo um baita sorriso. Dentes feios.

– Como é?

– Não desejar nada é o uso mais inteligente de um desejo. Deste jeito você assegura a si mesmo o direito de ainda ter algo a desejar. Você manteve o motivo para permanecer vivo.

Depois disso a conversa fluiu estranha. Truta saiu e foi pra casa. Nunca chegou. Foi atropelado por um motorista bêbado. Em sua defesa o motorista assassino argumentou que o velho maluco havia se atirado de encontro ao carro, mas o seu grau alcoólico era tão grande que foi complicado saber a real. Talvez Truta tivesse perdido o motivo para permanecer vivo, mas isso é algo que apenas ele pensaria. Só os malucos não acreditam no acaso, em coincidências. E o Truta morreu. Seu periquito também morreu, mas não de envenenamento atmosférico. Morreu de inanição. Esqueceram-no quando foram recolher os espólios de Truta. Suas histórias ruins foram recicladas em rolos de papel higiênico áspero. Mas entre suas coisas encontraram um rascunho de um epitáfio. Não havia lápide digna de um epitáfio no cemitério de indigentes em que ele foi enterrado, mas se tivesse ela seria assim:

AQUI JAZ ALGUÉM
QUE TENTOU
QUE OUSOU
DESEJAR