Doutor,
nós sabíamos que um dia chegaria a este ponto, não sabíamos?
Eu estava lá, mirando os vidros de remédio vazios em cima da mesa, o copo com uísque barato derretendo gelo, a garrafa com apenas um fundo de bebida. Já sentia a ponta dos dedos dormentes. Uma sensação boa. Uma sensação libertadora. Não havia arrependimento, não havia tristeza. O silêncio arpejava em meu corpo suas escalas mudas, e eu começava a fazer parte daquela sinfonia. Dissolvia-me no éter, sublimava na irrealidade. Acho que sorria. Daí ela entrou.
Tinha certeza que tinha trancado a porta, mas vendo-a puxando uma cadeira e sentando no outro extremo da mesa já não tinha mais tanta certeza. Não tinha ouvido a porta abrir. Ela jogou os cabelos negros e alisados para trás dos ombros, deixando apenas a franja indolente invadir seu rosto. Olhos grandes e maquiados, rosto oval e boca carnuda. Belos peitos de silicone, cinturinha lipoesculturada, bunda arredondada no tapa, coxas fortes. Adivinha quem acordou?
- Quem é você? - perguntei, segurando a baba que escorria da boca.
- Você sabe.
- Querida, eu nem sei mais quem eu sou.
- Sou a sua Morte.
Não consegui conter uma risada fungada.
- O que foi? - perguntou ela, franzindo as sobrancelhas neuroticamente pinçadas.
- Dá pra ser mais clichê? Eu, no final, delirium tremens, antropomorfizo a Morte como a Juliana Paes!
- É quem eu sou?
- Não, você é a Morte.
- Não sou, não.
- Mas você disse...
- Eu disse que sou a SUA Morte. Não sou A Morte.
- Putz, nem a oficial eu atraio. O que é você, uma estagiária?
Ela me olhou e sorriu. Minha calça estava ficando apertada.
- O que você quer? - perguntei, tentando alcançar o copo. Mas meu braço não me obedeceu. O copo dançou quando encostei os dedos inertes nele, mas não saiu da mesa.
- Nada. Eu só cheguei.
- Brega, brega. Gostosa, mas brega. E clichê – tombei o corpo e tentei focalizar o cérebro o suficiente para levar o copo até a boca. Consegui, mas me babei todo. - Aliás, eu já li esse livro.
- Eu sei.
- E não gostei do final.
- É por isso que estou assim?
- Você pergunta?
- Sou gostosa?
- Querida, só não empacotei até agora porque você acionou canais sangüíneos que já deveriam ter sido esquecidos.
- Você quer dizer, seu pau?
- Não faz isso...
- Desculpe.
- A Morte não se desculpa com ninguém.
- Não sou A Mor...
- Tá, tá, saquei.
Consegui beber mais um gole. Ela se levantou e deu a volta na mesa. Pegou a garrafa e encheu meu copo.
- É isso?
- É, acho que sim.
- É só isso? Você não vai falar nada? Não vai me passar um sermão? Um video com minha vida medíocre? Uma lição de esperança? Um passaporte para o Vale dos Suicidas?
- Não.
- E cadê a porra do túnel?
- Você quer um túnel?
- Não. Eu queria ver seus peitos.
Ela baixou o decote. Meus olhos quase saltaram das órbitas.
- Isso te fez feliz?
- Querida, se eu fosse imaginar a minha Morte, seria exatamente assim.
- Eu sei.
Ela não subiu o decote. Encostou aquele bundão na mesa e ficou me olhando.
- Você vai me levar?
- Para onde você quer ir?
- Não sei...
- Então não.
- E o que você veio fazer aqui?
- Para um suicida, você faz muitas perguntas.
- E isso não é o que é um suicida? Um cara cheio de perguntas sem resposta?
- Não. É um cara que achou uma única resposta para todas as perguntas.
- Preciso dar uma mijada.
- Quer ajuda?
- Não faz isso...
Consegui cambalear até o banheiro e fazer um lançamento oblíquo de urina.
- Posso perguntar por que?
- Se minha própria Morte não sabe, quem sou eu para saber?
- Sei lá. Achei que tinha algum motivo.
- Às vezes a ausência de motivos é motivo o suficiente.
- Que bonito.
- Obrigado.
Voltei ao meu lugar. Ela continuava lá, sentada na mesa com os peitos pra fora.
- Cobre essas coisas.
- Não gosta mais?
- Ah, cala essa boca!
Óbvio que ela obedeceu.
- O lance é que eu te chamei, mas não quero mais. Você é uma Morte gostosa e eu não quero isso. Não mereço uma Morte gostosa. Você deveria vir aqui feia, acabada, entrevada e cheia de verrugas. Vazando pus pela boceta. Aí eu te abraçaria. Desse jeito não dá.
- E o que você vai fazer então?
- Isso.
Saquei o revólver e dei dois tiros naqueles peitos. Ela levou os golpes e caiu da mesa. Cambaleou um pouco e me olhou. Sangue encharcava sua camisa e escorria por seu queixo. Tinha medo nos olhos. Engatilhei o revólver como fazem no cinema. Ela sorriu quando viu o cano apontado para sua cabeça.
- Você sabe que isso não vai adiantar nada. Eu volto.
- Eu espero que sim.
Blam! Espalhei seus miolos no assoalho. Caí sentado do lado do corpo. A minha Morte estrebuchava. Eu tinha matado a minha Morte.
O som dos tiros alertou os vizinhos. Miraculosamente uma ambulância chegou a tempo de me fazer uma lavagem estomacal. Seis horas numa enfermaria e aqui estou de volta, tendo como únicas testemunhas os três buracos de bala, dois na parede, um no chão.
Tenho uma nova receita para o senhor, Doutor. Mais uma mancha na prancha Rorschach de meu cérebro. Mais uma tarja preta em meu prontuário.
Mais um atestado da sua incompetência.
24.11.06
A minha Morte
Esporrado por Zebedeu às 09:50
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