6.11.06

Pau de Fogo

Doutor,

comprei uma arma.

Nem sei porque. Simplesmente comprei. Descobri que iria conseguir fechar as contas do mês com alguma folga, e como isso não acontecia há algum tempo decidi gastar este resto de grana em algo que me satisfizesse de alguma maneira. Eu estava caminhando pela rua quando fui abordado. Psiu, quer comprar um revólver? Como é? Chega aí. Olha. Três oito, número de série raspado. Você tá querendo me empurrar uma gelada? Como vou saber que você não matou alguém com essa arma? Meu, pelo preço que estou fazendo não dou direito a perguntas e nem garanto respostas. Gostei da argumentação e fechei o negócio. Cheguei em casa com um trezoitão em um bolso da jaqueta e uma caixa de munição de brinde na outra.

Não, eu não sei realmente o que me levou a comprar aquela arma. Do jeito que foi pareceu que ela me foi vendida pelo demônio em pessoa. O doutor bem sabe que eu não acredito nessa coisas, mas que pareceu coisa de intervenção demoníaca, isso pareceu.

A princípio eu não tirei a arma do bolso. Deixei-a lá, pesando minha jaqueta. Tirei a caixa de balas e coloquei sobre a mesa. Abri, e vi a pequena plantação de cabeças de chumbo enfileiradas. Tirei uma cápsula e olhei bem. Me deu vontade de abrir, de dissecar aquela pequena maravilha da tecnologia. Uma coisa tão simples, tão básica, mas tão bonita, tão letal. Reprimi o impulso, pois não sabia como fazer e podia dar alguma merda. Melhor não arriscar.

Meu pai tinha um revólver. Era pequeno, prateado e quase nunca saía do estojo. Calibre .22. Arma de moça. Deixava-a ao alcance, na gaveta do criado mudo do seu lado da cama. Mantinha a munição escondida em local desconhecido, se é que havia alguma. Tinha muita criança em casa. Um dia entrei no quarto dele com meu primo e fomos vê-la. Claro que ele nos flagrou na hora. Mas não brigou com a gente, não. Fez muito pior. Sentou do nosso lado e pediu para segurar a pistola. Pegou-a com certa reverência, com a ponta dos dedos. Mostrou com este gesto que respeitava a arma, mesmo sendo adulto, e que deveríamos fazer o mesmo. Ficamos quietos vendo-o verificar se estava descarregada. Daí ele girou o tambor e fechou-o com um estalo metálico que retiniu em nossas almas. Então deu-a para mim. Pega, disse, não tem problema. Peguei igual a ele, com a ponta dos dedos. Agora mira na cabeça do teu primo. Ambos arregalamos os olhos. Vai, não tem perigo. Quero te mostrar uma coisa. Obedeci, mas tremendo. Meu primo quase se borrou todo quando o cano gelado encostou em sua testa. Abre os olhos, Rique. Se este for o seu último momento de vida, encare-o de olhos abertos. Uma lágrima escorreu pela face de meu primo. Várias pela minha. Queria implorar para que ele parasse com aquilo. Tinha perdido a graça, mesmo sabendo que a arma estava descarregada. Daí ele falou, com uma voz calma. Sabe que é pior levar um tiro de .22 do que de qualquer outra arma? Principalmente na cabeça. O cartucho tem pouca pólvora, e a bala não tem muita força. Num tiro assim, à queima-roupa, a bala só tem força para passar pelo osso do crânio uma única vez. Ela vara a testa e fica quicando dentro da tua cabeça, dissolvendo seu cérebro, tuas lembranças aos poucos. Não é o impacto da bala que te derruba, mas tuas pernas dobram quando a parte do teu cérebro que coordena as funções motoras vira geléia. É uma morte limpa, quase sem sujeira. É uma morte profissional. Não respondemos. Ele pegou de novo a arma de minha mão e nos enxotou do quarto. Nem preciso dizer que nunca mais brincamos com ela.

E agora eu estava lá, com um revólver no bolso. Não era para uma morte limpa. Um tiro à queima-roupa na testa transformaria a parede atrás do alvo em uma pintura abstrata de sangue, ossos e miolos. Coisa feia. Uma morte amadora, barulhenta e asquerosa.

Fui até o armário da cozinha e guardei a caixa de balas ironicamente perto do lugar onde guardo meus doces. Daí peguei na gaveta um saco plástico com fecho de vedação para freezer e rapidamente coloquei o revólver dentro. Fechei o saco ainda tremendo. Peguei então um rolo de fita adesiva e fui até o banheiro. Abri a tampa do reservatório de água da descarga e colei o saco na parede interna. Precisei dar duas descargas para conseguir, e ficou bem ruim. Mas fechei a tampa e tentei esquecer da arma.

Eu até consegui. Mas não consegui evitar de sonhar com um cérebro sendo triturado por uma bala ricocheteante. Lembra de... Quando... Daquela vez que... E uma a uma as memórias desapareciam.

Só uma lembrança ficou quando finalmente acordei: que ainda tinha uma conta pra pagar e que eu não tinha mais um puto para isso.

Nunca senti tanta vontade de dar um tiro na minha testa.