20.6.06

Barfly

Doutor,

ontem eu saí. Fui dar uma volta, espairecer. Encher a cara sem nenhum motivo além do habitual. Entrei num bar metido a pub. Legal até. Passei algum tempo imaginando a cara do decorador. Podia ser um leprenchaunt viado ou uma bicha irlandesa, se é que existe tal distinção. Mas com certeza não era ruivo. Não sei porque.

Gosto das segunda-feiras. É o dia do baque, da realidade, da água fria escorrendo pela nuca. As pessoas não costumam sair de segunda, e isso me agrada. Não gosto de pessoas. Gosto de gente. E gente como a gente (não você!) só sai do casulo na segunda. O resto da semana é das pessoas.

O barman tentou puxar assunto enquanto tirava um pint de fine ale. Dois dedos de espuma milimetricamente medidas por um risco estampado no copo. Tirada regulamentar, profissa. Aceitei a cerveja mas recusei o papo. Não é porque sou o único cliente que tenho que ser simpático. Vai conversar com a pia e me deixa em paz!

Na televisão passava o VT de um jogo da copa. Não tem como escapar. Quando não é ao vivo, é VT. E quando não é VT, é um bando de fanáticos endinheirados falando a respeito. Mecenas de gladiadores pasteurizados. Sonham com a bola que lhes falta.

Ela entrou. Feia, muito feia. Feia demais até para mim. Não inspiraria pensamentos eróticos nem em um presidiário. Entrou, flanou pelo ambiente como um peido num banheiro público, e sentou perto de mim no balcão. Deixou uma banqueta entre nós, como último bastião de sua pretensa virtude e de meu bom gosto. A cerveja desceu mais amarga que o habitual.

- Vamos jogar? - eu disse. Ela se acendeu como se tivessem lhe colocado um reator no rabo.

- Jogar?

- É, jogar. Tá a fim?

- Depende do jogo...

Leu a cartilha, mocréia? Se fazendo de difícil para mim? Não faz isso. Não pega bem. Especialmente numa segunda.

- Chama-se "Sedução".

- Não conheço.

- É claro que não...

- Você que inventou?

- Eu? De jeito nenhum. Nem sei jogar direito...

- E como é?

Bebi a cerveja até o fim. Ela aproveitou e derrubou o bastião. Sentou do meu lado.

- Começou errado.

- Já estamos jogando?

- Desde que você entrou.

Deu para ouvir as fichas tilintando em seu cérebro enquanto caíam. Acendeu um cigarro. Filei um.

- Tem fogo? - ela me perguntou, piscando o olho muito maquiado.

- Pára com isso! Tá estragando o jogo!

- Mas eu nem sei as regras!

- É simples: se um ganha, ambos ganham. Se perde...

- Ah.

- O lance não é sexo. O lance não é ficarmos nos esfregando em um canto qualquer. O lance é seduzir. Mutuamente. Você não me seduz. É feia, atirada e vulgar. Se veste mal. Provavelmente é uma encalhada insuportável. E duvido que tenha mais do que meia dúzia de neurônios plenamente funcionais. Mas isso é parte do jogo. Você precisa me convencer que pode valer a pena.

- Você me acha feia?

- E burra. Sim, acho. Mas isso pode mudar. É por isso que estamos jogando. Convença-me do contrário.

Ela pensou por um instante. Dava para ouvir os relês chaveando em seu cérebro. O jukebox começou a tocar U2. Pela décima segunda vez desde que eu havia sentado no balcão.

- Por que? - perguntou ela, finalmente.

- Hum?

- Por que eu tenho que te seduzir? Por que você não me seduz?

- Eu já estou fazendo isso.

- Já?

- Já.

- Me chamando de feia e burra?

- Você não foi embora indignada, foi?

O estalo desta vez foi tão forte que acho que vi seu olho esquerdo dar uma piscada involuntária.

- Não... - concedeu ela, subitamente consciente da própria mediocridade.

- Não me entenda mal. Não sou nada melhor que você. Aliás, duvido que eu seja minimamente digno de sua presença. Sou um merda, um ninguém que se acha grande coisa. Me desculpe.

- Quié isso, não fala assim. Você é até bonitinho...

- Viu?

- Hã?

- Viu como funciona? É assim que você tem que jogar. Ataquei em seu ponto fraco. Sua autopiedade. Você, por um instante, se viu em mim, e isso gerou empatia. Virei um reflexo de sua solidão, e isso te atraiu que nem uma mosca para um balde de merda. Isso é sedução.

- Não, isso é pena.

- Pena o meu caralho. Se eu começasse a chorar em meia hora estaria com a cabeça enterrada em sua xoxotona.

- Você é um escroto!

- E mesmo assim você não foi embora. Vamos, estamos perdendo o jogo. Você ainda não me seduziu.

- Você também não está ajudando nada...

- Claro que não. Eu sou a vítima, estou na defensiva. Você que deu o primeiro passo. Já te seduzi antes de você sentar. Seja por falta de opção ou desespero, você viu em mim uma chance de não passar mais uma noite sozinha, chorando abraçada a um gato obeso. É o meu trunfo. E você ainda não o roubou.

- O que você quer que eu diga?

- Tudo menos isso.

- Isso o quê?

- Isso.

- Você é maluco!

- E você é patética.

Primeira lágrima. Ponto pra mim.

- Ô, cara, pega leve.

- Fica na tua, Johnnie Walker.

- Meu nome é Fulgêncio.

- Ô nomezinho feio da porra, hein? Dá mais uma breja.

- Baixa tua bola, aí.

Apesar da ameaça, me deu a cerveja. A feia ainda chorava, mas tentava disfarçar esfregando as bochechas. A maquiagem desfazia-se a cada passada. Eram lágrimas ácidas. Levantei e me aproximei dela. Olhei-a bem nos olhos. O fluxo diminuiu, mas o estrago já estava feito. Parecia um palhaço derretido. Ela me olhou também, meio assustada, meio implorando piedade. Tomei sua mão. Ela apertou a minha. Puxei-a mais para perto e lambi seu rosto. Sorvi lágrimas, maquiagem e tristeza. Ela não se afastou. Ao invés disso fechou os olhos e curtiu o gesto.

- Ganhou - eu disse em seu ouvido.

- Ganhei?

- Arrã.

- Vamos para minha casa?

- Não.

- Não? Por que?

- Porque o jogo acabou.

- Mas...

Soltei-a e fui embora. Paguei quinze paus pelos dois chopps, mas nem me importei. A noite tinha valido cada centavo.

Fazia tempo que eu não dormia tão bem.