20.1.06

O Crepúsculo da Bicha

Doutor,

a cena habitual: eu, um bar, uma cerveja. Noite de quinta feira e categoria. Barman bocejando. Caubi Peixoto chorando babaquices no alto falante. Cérebro formigando, saco enchendo. Daí entra em cena uma bichinha. Daquelas, sabe? Camiseta cortada, mãos de tiranossauro, óculos coloridos, cabelinho estranho, magra que nem um somali. Caminhava pisando em ovos com os pezinhos calçando uma sandália cheia de brocados. Bolsinha a tiracolo. Veio até o balcão e estacionou ao meu lado. Pediu um Saint Remy pro barman, que preparou o drinque e o entregou sem mostrar qualquer reação. A bicha deu uma bicada na bebida, sem esquecer de deixar o mindinho ereto enquanto erguia o copo. Suspirou.

- Tô passada! - disse, a lígua sibilando entre os dentes. - Pas-sa-da!

Acho que ela esperou algum comentário meu, mas como não dei trela, continuou:

- Não aguento mais essa vida - chorou. - Acabou tudo, a graça, o brilho, o tesão. Quero morrer!

- Então cala a boca e se mata de uma vez, ô caralho! - resmunguei, me arrependendo em seguida.

- Acabou a graça! - gritou ela, saltitando em seu tamborete. - Fiquei ultrapassada! Dê-modê! Sou um fóssil, uma relíquia, uma pantufa velha e puída esquecida embaixo do futón, uma gravata de piano, uma...

- Uma porra de uma bichola chata! Porra, vai se tratar!

- Sou bicha, sim. Bicha, viado, paneleiro, tresloucada, entrevada e pau no cu! Sou tudo isso, mas não sou mais gay. Não, não sou. Virei uma caricatura, um estereótipo, um cliché de comédia do final do século passado! Sabe por que? Sabe? Hein? Hein?

- Porque ninguém agüenta mais tanta frescura junta?

- É! É isso aí! Gay hoje é fino, classudo, elegante, inteligente, compreensivo, refinado. E eu não, sou só uma bicha velha e descontrolada, louca pra subir na mesa e dançar que nem uma doida, fazer um pití, apalpar a bunda do gostosão da festa, fazer comentários impertinentes e sexistas pra todo mundo. E por isso estou fora de moda! Até cowboy gay é melhor que eu! Olha minhas roupas. Olha! Quem, senão uma bicha louca como eu se vestiria assim? Mas não, hoje a "comunidade gay" só veste GAP, Armani, Gucci... Como eu, essa bicha pobre e segregada vou conseguir dinheiro para esse tipo de coisa? Moro de favor num quarto-sala na Barata Ribeiro, e o pouco que ganho não dá nem pra comida, quanto mais para decoração. No meu tempo bicha levava porrada todo dia, dava o cu pra quem estivesse a fim, era o ó do borogodó. Agora não. Só vemos por aí os homossexuais finos, elegantes, bonitos e bem alimentados. São executivos, empresários, ricos. Deixamos de ser minoria, de ser diferentes, de chocar. Somos moda agora. Porra, a merda do mundo virou gay!

Ouvi a lamúria sem me manifestar, mas aquilo já estava me enchendo o saco.

- Ô Bornay! Pára de chorar agora ou te meto a mão na cara!

- Jura? Jura que faz isso?

- O negócio é o seguinte: esquece cinema, televisão ou revista, tá? Esquece. Agora pensa: quantos gays bonitos, elegantes, educados, refinados e ricos você conhece? Pessoalmente?

- ...

- Taí. Mito. Lavagem cerebral da mídia. Marketing de minorias. É só ir a uma parada gay ou desfile de carnaval e perceber que a realidade é bem diferente. Vocês continuam sendo uma cambada de filhos da puta espalhafatosos, inconvenientes e desagradáveis que só estão no mundo para aporrinhar. Então pára de viadagem e vai pro teu muquifo dar o rabo pra algum pervertido e me deixa em paz, tá legal? Você ainda são uns aliens emplumados, tá certo?

A ficha do viado demorou a cair, mas deu pra notar a hora exata que aconteceu. Os olhos cheios de maquiagem brilharam por trás do óculos, e a boca se abriu num arremedo de sorriso torto. Limpou as lágrimas, se levantou com um salto afeminado e veio correndo em minha direção, a boca já fazendo um bico, pronta para um beijo estalado. Levou um banho de cerveja antes de completar seu intento.

- Ai, meu Deus! - gritou ela, empolgada. - Obrigada! Obrigada, obrigada, obrigada... - e saiu do bar correndo a passos curtinhos.

- Trás outra, Zé.

O barman abriu outra cerveja e colocou em cima do balcão.

- Que foda, hein? - disse ele.

- Pode crer.

- Gostei do jeito que você lidou com ele. Merecia.

- Valeu.

- Sabe, eu largo daqui a meia hora. Que tal se a gente fosse até meu apê? Comprei um home theater novinho, e o box de Will&Grace. A gente podia assistir juntos...

Deixei uma nota em cima do balcão e levantei, sem encostar na cerveja. Ele ainda me olhou com alguma esperança embaixo daquelas sombrancelhas bem aparadas. Me virei para ele antes de sair e mostrei meu dedo do meio.

- Te fresquêia, ô bichona!