12.1.06

Simbiose

Doutor,

quando eu era moleque, com os hormônios fervilhando em minhas bolas, eu arrumei o esquema ideal de conquista. O senhor me conhece. Uma de minhas poucas qualidades com certeza não é a aparência, então eu podia eliminar a estratégia da mera atração espontânea de meu repertório. Além disso era tímido (ainda sou), o que também não ajudava quando era necessário fazer a abordagem. O esquema ideal surgiu mais por acaso do que por planejamento, mas pelo tempo que durou funcionou a contento.

Éramos três amigos. Eu, o Manco (que não era manco, mas que ganhou o apelido após discutir com um bêbado, que o chamou de "Manco das Idéia" (sic)) e o Antenor, o gostosão do bairro, belo como um deus grego, burro feito um cachorro de beira de estrada. A amizade surgiu naturalmente, sem que forçássemos nada, e também naturalmente descobrimos nossas participações no esquema. Antenor era a isca. Manco era o puxador de assunto. Eu era o sidekick, o contra-regra, que ficava nos bastidores garantindo que tudo seria feito a contento. E funcionava, na maioria das vezes.

Antenor sempre atraía todas as mulheres em qualquer evento. Era a isca. Além de ser dono de uma beleza ímpar (chegou a virar modelo), era extremamente carismático, o que ajudava muito a mascarar sua completa e total ignorância dos assuntos mais básicos. Era o burro simpático, que ninguém entende por que gosta, mas que gosta mesmo sem entender. Ainda assim de vez em quando precisávamos interferir, principalmente quando percebíamos que suas asneiras podiam sair do controle e reverter o esquema vencedor. Nas vezes que era impossível evitar algum comentário especialmente grotesco, a Noite de Caça virava Noite de Briga, o que, no fundo, também tinha sua diversão.

Depois que Antenor atraía nossas presas, era hora de Manco atuar. E ele era um mestre no quesito "Tirar assuntos da cartola". Não era feio como eu, mas também não era bonito como o Antenor. Tinha um grande nariz adunco e um ego quase do mesmo tamanho que ele, mas possuía uma lábia invejável. Era mestre em fazer as mulheres se apaixonarem. Conversava a respeito de tudo, e sempre tinha alguma opinião bombástica para dar, mesmo que elaborada de última hora. Seu maior mérito era falar tanto que não dava tempo para suas vítimas pensarem a respeito. A maioria só percebia o esquema no dia seguinte, e aí já era tarde. Além disso Manco era imune ao amor. Tratava as mulheres como patos em sua alça de mira. Deixava-as literalmente de quatro, e saía andando sem pudores, pronto para a próxima.

A minha atuação era mais discreta. Eu ficava no fundo, apenas aguardando os restos caírem da mesa, como uma rêmora presa a uma barriga de tubarão. Nunca fui bonito, nunca tive um bom papo, nunca fui imune ao amor. Eu era o que freqüentemente saía de mãos abanando, o último da fila darwiniana, mas mesmo assim me divertia muito com o esquema. E de vez em quando sobrava alguma coisa interessante para mim, e todas as noites de fracasso eram imediatamente esquecidas. Éramos o Belo Imbecil, o Feio Esperto e eu, a Rêmora Caronista.

Certa vez Antenor atraiu algo incomum para ele: uma mulher linda e inteligente. Entenda, não é um pensamento machista, eu sinceramente acredito na união das duas qualidades no sexo feminino, já tendo testemunhado mais de uma vez acontecer. O lance é que não era comum esse tipo de mulher se interessar pelo Antenor. Normalmente após duas frases elas fugiam para o Manco, ou mesmo para mim (se a noite estava terminando). O lance é que ele ficou com ela, e depois a trouxe de volta para a mesa. Não me recordo seu nome, mas era uma jóia rara. Sem que me desse conta, começamos a conversar. Trocamos idéias, opiniões, impressões. Era uma conversa e uma visão deliciosas. Mesmo assim acabei beijando uma amiga dela. Naquela noite outro esquema foi naturalmente construído, mesmo que eu não tivesse percebido imediatamente. Nos dias seguintes Antenor trazia sua nova "namorada", que trazia alguma amiga para mim, além de, é claro, sua conversa deliciosa. E eu acabava ficando com suas amigas enquanto fantasiava com ela.

Um dia juntei coragem e perguntei por que ela não ficava de uma vez comigo, já que nos dávamos tão bem, e sim com o Antenor, com quem nem ao menos conversava. Sua explicação foi incrivelmente clara e cruel: "Sou muito bonita para ficar com alguém como você. Gosto de conversar com você, mas ninguém compreenderia essa contradição, e isso acabaria nos separando. E gosto demais de você para colocar tudo a perder por causa de sexo".

Compreendi imediatamente o esquema. Toda vez que ela beijava o Antenor, estava me beijando. E toda vez que eu beijava alguma amiga sua, beijava-a de volta. Éramos, no fundo, namorados que eliminaram o empecilho sexual do contexto. Era algo genial, calculista, sem falhas. Chorei naquela noite em minha cama, desconsolado, apaixonado, amargurado, mas na manhã seguinte racionalizei que era o melhor. Continuamos assim, ela com o Idiota, eu com as Imbecis, mas sempre juntos, mesmo sem nos tocarmos fisicamente. O Manco não entendia nada. Era esperto, mas não muito inteligente. Foram semanas mágicas e estranhas, e que estavam fadadas ao fracasso, mas não ao esquecimento, tanto que estou aqui, quinze anos depois, narrando para você.

Depois que nos separamos a amizade com Antenor e Manco também ruiu aos poucos. Antenor arrumou outra namorada, loira, burra e linda como uma pintura de Botticelli, e cometeu o ato primordial: se apaixonou. Perdemos nossa isca. Eu acabei mudando para São Paulo logo depois. Para o Manco foi mais difícil, mas as últimas notícias que tenho dele é que arrumou outro grupo de amigos e continua na luta, sem noção de sua própria idade ou do ridículo. Pelo que sei se diz feliz, mas duvido que realmente seja.

Eu, a Rêmora, virei o que virei. Perdi meus tubarões, e as migalhas são cada vez mais escassas. De vez em quando penso em arrumar mais um Belo Imbecil e um Feio Esperto para me ajudar, mas aí me lembro do Manco e volto para meu casulo. Foi uma época deliciosa, das melhores da minha vida. Escrever as histórias daquela época seria o suficiente para encher uns três livros, mas sinceramente não sei se teria paciência para isso. Nostalgia vem e vai. Veio.

Agora já foi.