Doutor,
estava eu em casa, sozinho com meu cérebro macilento, pensando em nuvens de fuligem na forma de ratos brancos de laboratórios cercados por eco-chatos quando fui interpelado.
- Inútil!
Meu primeiro impulso foi, como sempre, o último lógico. Fechei os olhos.
- Por favor, Vozes, não comecem agora...
Claro que fui ignorado.
- Cretino!
Por um singelo instante epifânico me dei conta de que aquelas ofensas, por mais gratuitas que fossem, não tinham graça. Nem desgraça. Tampouco originavam-se de minha cabeça pouco original. Não, não, sem redundâncias pleonásticas e viciosas. Elas vinham, isso sim, de um pombo pousado à janela de minha sala. Assim que percebi isso perguntei a primeira coisa que passou na minha mente. Uma citação:
- Olá, Sr. Pombo! Como você faz para ter dentes tão brancos?
Ele, claro, respondeu de forma bastante didática:
- Pombos não tem dentes. Nós temos bicos. Mastigamos os alimentos através de uma pequena bolsa em nosso esôfago denominada Moela.
- Uma tremenda economia em tratamentos odontológicos - tergiversei.
- Mas que nos obriga a, de tempos em tempos, comer pedras.
- Eu comeria uma sopa de pedra. E a engoliria com movimentos peristálticos.
- Não fala merda.
Talvez para pontuar sua interjeição grosseira, de sua cloaca escorreu um pouco de titica sobre o batente de minha janela. Achei que era uma tentativa de se comunicar não-verbalmente e soltei um peido tão verborrágico que quase melei as cuecas.
- Não faça isso.
- Por que não?
- Porque não.
- Vai levar muito tempo para essa conversa cair em um clichê pseudo-gótico?
- Não sou um corvo.
- Nem eu um espantalho.
- Tem certeza?
Nem precisei olhar para mim mesmo para que a dúvida do pequeno pássaro fizesse sentido e eu a compartilhasse. Tal constatação me fez ficar imóvel. E recheado de palha.
- Você gostaria de ser um corvo? - perguntei.
- Por que?
- Por que não?
- Pois sim!
- Pois não?
- Truco!
- Desce, marreco!
- Não sou marreco. Sou pombo.
- Cagam igual.
Aquele era um argumento indefectível. Mas meu amigo pombo não estava pronto para esmorecer.
- Como criaturas que atiravam fezes uns nos outros puderam chegar a tal estágio de evolução?
- Mudando do concretismo para o relativismo metafórico. Se pensar bem ainda vivemos numa interminável guerra de merda.
- Tem razão.
- Ela é a culpada.
- Quem?
- A Razão. Desde que o homem a descobriu tenta possuí-la para si. E como ela é um artigo raro e efêmero nós desesperadamente atiramos nacos de excremento na tentativa vã de recuperá-la.
- E dá certo?
- Às vezes. Mas nunca como último argumento.
- O último argumento é sempre a violência.
- Não, meu iconoclástico colega! A violência é justamente a ausência de argumentos.
- Desde quando?
- Desde sempre. E pela quantidade de violência que vemos por aí em breve perderemos o título auto-infligido de "racionais", já que não conseguiremos mais argumentar porra nenhuma.
Eis que o pombo baixou a cabeça e pensou a respeito do que eu disse. Com a ponta da asa coçou o bico inferior.
- Há lógica em seu raciocínio.
- Da mesma maneira que há merda em minha janela.
- Desculpe por isso...
- Não se preocupe...
- Há tempos pouso nas janelas das casas. Aleatoriamente. Pouso, xingo e me vou. A maioria nem me ouve. Você ouviu. Você respondeu.
- E isso é bom?
- Não. Faz com que o hábito de uma vida perca toda a graça. E olha que minha vida é relativamente curta. Mas o papo foi bom.
- Você fala como se se despedisse.
- E me despeço.
Senti vontade de surpreender o pombo com um movimento rápido. Fecharia a janela e o prenderia comigo, recheando-o com minhas divagações. Depois o comeria com curry estragado. Hum, que fome. Mas continuei espantalhado no sofá.
- E você volta?
- Não.
- Nunca?
- Nunca mais.
E se foi, deixando-me apenas seu eco referencial previsível. Instintivamente cofiei um bigode inexistente e deitei a cabeça na almofada do sofá. Assim que encostei ouvi o grito de uma multidão:
- CUIDAAAAAAA-DOOOOOO!
Deitei mesmo assim. Posso até conversar com pombos, mas nunca com ácaros. Eu atropelo ácaros, ora bolas!
Diariamente.
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O que eu tomei, doutor?
Nada.
Talvez seja por isso.
15.5.07
O Pombo
Esporrado por Zebedeu às 18:06
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