15.5.07

O Pombo

Doutor,

estava eu em casa, sozinho com meu cérebro macilento, pensando em nuvens de fuligem na forma de ratos brancos de laboratórios cercados por eco-chatos quando fui interpelado.

- Inútil!

Meu primeiro impulso foi, como sempre, o último lógico. Fechei os olhos.

- Por favor, Vozes, não comecem agora...

Claro que fui ignorado.

- Cretino!

Por um singelo instante epifânico me dei conta de que aquelas ofensas, por mais gratuitas que fossem, não tinham graça. Nem desgraça. Tampouco originavam-se de minha cabeça pouco original. Não, não, sem redundâncias pleonásticas e viciosas. Elas vinham, isso sim, de um pombo pousado à janela de minha sala. Assim que percebi isso perguntei a primeira coisa que passou na minha mente. Uma citação:

- Olá, Sr. Pombo! Como você faz para ter dentes tão brancos?

Ele, claro, respondeu de forma bastante didática:

- Pombos não tem dentes. Nós temos bicos. Mastigamos os alimentos através de uma pequena bolsa em nosso esôfago denominada Moela.

- Uma tremenda economia em tratamentos odontológicos - tergiversei.

- Mas que nos obriga a, de tempos em tempos, comer pedras.

- Eu comeria uma sopa de pedra. E a engoliria com movimentos peristálticos.

- Não fala merda.

Talvez para pontuar sua interjeição grosseira, de sua cloaca escorreu um pouco de titica sobre o batente de minha janela. Achei que era uma tentativa de se comunicar não-verbalmente e soltei um peido tão verborrágico que quase melei as cuecas.

- Não faça isso.

- Por que não?

- Porque não.

- Vai levar muito tempo para essa conversa cair em um clichê pseudo-gótico?

- Não sou um corvo.

- Nem eu um espantalho.

- Tem certeza?

Nem precisei olhar para mim mesmo para que a dúvida do pequeno pássaro fizesse sentido e eu a compartilhasse. Tal constatação me fez ficar imóvel. E recheado de palha.

- Você gostaria de ser um corvo? - perguntei.

- Por que?

- Por que não?

- Pois sim!

- Pois não?

- Truco!

- Desce, marreco!

- Não sou marreco. Sou pombo.

- Cagam igual.

Aquele era um argumento indefectível. Mas meu amigo pombo não estava pronto para esmorecer.

- Como criaturas que atiravam fezes uns nos outros puderam chegar a tal estágio de evolução?

- Mudando do concretismo para o relativismo metafórico. Se pensar bem ainda vivemos numa interminável guerra de merda.

- Tem razão.

- Ela é a culpada.

- Quem?

- A Razão. Desde que o homem a descobriu tenta possuí-la para si. E como ela é um artigo raro e efêmero nós desesperadamente atiramos nacos de excremento na tentativa vã de recuperá-la.

- E dá certo?

- Às vezes. Mas nunca como último argumento.

- O último argumento é sempre a violência.

- Não, meu iconoclástico colega! A violência é justamente a ausência de argumentos.

- Desde quando?

- Desde sempre. E pela quantidade de violência que vemos por aí em breve perderemos o título auto-infligido de "racionais", já que não conseguiremos mais argumentar porra nenhuma.

Eis que o pombo baixou a cabeça e pensou a respeito do que eu disse. Com a ponta da asa coçou o bico inferior.

- Há lógica em seu raciocínio.

- Da mesma maneira que há merda em minha janela.

- Desculpe por isso...

- Não se preocupe...

- Há tempos pouso nas janelas das casas. Aleatoriamente. Pouso, xingo e me vou. A maioria nem me ouve. Você ouviu. Você respondeu.

- E isso é bom?

- Não. Faz com que o hábito de uma vida perca toda a graça. E olha que minha vida é relativamente curta. Mas o papo foi bom.

- Você fala como se se despedisse.

- E me despeço.

Senti vontade de surpreender o pombo com um movimento rápido. Fecharia a janela e o prenderia comigo, recheando-o com minhas divagações. Depois o comeria com curry estragado. Hum, que fome. Mas continuei espantalhado no sofá.

- E você volta?

- Não.

- Nunca?

- Nunca mais.

E se foi, deixando-me apenas seu eco referencial previsível. Instintivamente cofiei um bigode inexistente e deitei a cabeça na almofada do sofá. Assim que encostei ouvi o grito de uma multidão:

- CUIDAAAAAAA-DOOOOOO!

Deitei mesmo assim. Posso até conversar com pombos, mas nunca com ácaros. Eu atropelo ácaros, ora bolas!

Diariamente.

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O que eu tomei, doutor?

Nada.

Talvez seja por isso.