20.6.07

Qualé a graça?

Doutor,

da infinita série de sonhos renitentes que tenho, poucos são dignos de nota ou recordação. Voar, cair, ficar pendurado num bueiro cheio de jacarés (não pergunte) e brigas com socos ineficazes (apenas de minha parte, claro) fazem parte do rol que, tenho certeza absoluta, devem existir compêndios e compêndios de estudos que traçam significados, origens, conseqüências e tratamentos para cada um deles. Desta feita não interessam a ninguém além de embusteiros e trambiqueiros de plantão. O doutor inclusive.

Assim dedico este texto a outro sonho reincidente que vez ou outra, por motivos ainda desconhecidos, teima em assombrar minhas mal dormidas noites de sono. Um pesadelo, na verdade. Sim, doutor, vou abrir uma pequena janela deste meu cérebro imperscrutável. Pare de salivar.

Pois bem, neste meu sonho eu descubro que sou um humorista. Mas não um péssimo humorista como o doutor deve ter precipitadamente imaginado (acertei?). Não, eu sou um humorista dos bons. Tão bom que minhas piadas são sempre pontuadas com uma claque histriônica ou pelo repique onomatopéico de uma bateria ("Turum-pshhh!"). Mas tão bom que nenhuma frase que sai da minha boca é levada a sério.

- Meus pêsames...

(Turum-pshhh!)

- Hahahahahahaha! Ai, Zebedeu, assim quem morre sou eu! Olha: estou até chorando!

- Toma. Eu tenho um lenço.

(Claque Histriônica)

- Pára! Estou quase me mijando!

O mais estranho é que a racionalização de que eu sou um comediante só surge após eu despertar. Durante o sonho nem me dou conta do fato, continuando a reagir com naturalidade às situações mais escabrosas. É como se eu estivesse surdo aos repiques e claques, como se estes fizessem parte da pós-produção de minhas memórias, reservada a quem assite, não em quem participa. Claro que isso acaba causando alguns erros de sincronia.

- ... independente do fato das oligarquias ruralistas alegarem que não estão conspirando para um monopólio da indústria e do comércio, mesmo assim vemos que...

(Claque)

- Huahuahuahuahuahua! Boa, boa! Marta, vem ouvir isso!

- ... sendo que a sociedade consumista do século XXI está cada vez mais fútil e, dia a dia, transformando produtos de consumo em artigos rapidamente descartáveis...

(Claque faz "Huuuuuuuuuuu!")

- Ai! Tá doendo tudo! Não agüento mais rir!

- ... concluímos que a causa de todos os males da humanidade é, a priori, a própria humanidade.

(Turum-pshhh!)

Com isso eu me torno a alma de todas as festas. As pessoas aguardam ansiosas por minha chegada, me cercando e despejando sinceras gargalhadas a qualquer merda que saia de minha boca.

- Posso pegar uma cerveja? Obrigado.

(Claque Histriônica)

Claro que inevitavelmente eu entro em uma crise existencial. Me irrito com aquilo, tenho ganas de ser levado a sério. Se não isso, ao menos ser ignorado quando falando banalidades. Viro um humorista amargo, sem graça. Ao menos para mim, é claro.

- Vocês são idiotas? Qual é a PORRA da graça?!?

(Pessoas rolam e choram de rir, sem conseguir responder)

- CARALHO! Estou falando SÉRIO! Será que dá para alguém parar de rir e me escutar?

Claro que ninguém escuta no meio da gargalhada coletiva. E mesmo se escutasse apenas pioraria a situação. Com isso eu simplesmente desisto de falar. Claro que não dá certo. Involuntariamente começo a performar pastelões mudos no melhor estilo Buster Keaton. Ninguém se agüenta. As risadas viram a trilha sonora de minha vida, junto com a claque forçada e os repetitivos repiques. Nem no banheiro tenho sossego, pois meus gases são expelidos de maneira sonora e, de algum modo, escatologicamente hilárias, fazendo a claque ir à loucura.

Normalmente é nesta fase que acordo. Irritado, frustrado e sem um pingo de senso de humor. E cinco minutos antes do despertador. Saio da sitcom sináptica e caio de cabeça na tragicomédia da realidade, onde a única diferença é a ausência de claques e repiques. E de risadas. Mas o resto é igual.

Pronto, doutor. Mais lição de casa para preencher sua vidinha vazia.

Espero que se divirta muito.

(Turum-pshhhhh!)