28.6.07

Surto indecifrável de consumismo exacerbado

Doutor,

o senhor sabe que sou uma das pessoas menos consumistas do mundo, não sabe? Daqueles que usa uma camiseta até que a mesma se dissolva sobre o próprio corpo antes de sequer pensar em comprar outra.

Então por favor me explique a terrível compulsão que senti ao ver o produto aí do lado a venda.

Por um instante me senti como uma cocota deslumbrada desfilando por um shopping armada até os dentes branqueados com um cartão de crédito sem limites visíveis a olho nu.

Por razões financeiras óbvias ainda não comprei, então se o doutor estiver pensando em um presente para me dar de aniversário (não esqueceu, né?), pode ficar a vontade. Está a venda bem aqui.

Mas anda logo antes que eu faça uma besteira!

20.6.07

Qualé a graça?

Doutor,

da infinita série de sonhos renitentes que tenho, poucos são dignos de nota ou recordação. Voar, cair, ficar pendurado num bueiro cheio de jacarés (não pergunte) e brigas com socos ineficazes (apenas de minha parte, claro) fazem parte do rol que, tenho certeza absoluta, devem existir compêndios e compêndios de estudos que traçam significados, origens, conseqüências e tratamentos para cada um deles. Desta feita não interessam a ninguém além de embusteiros e trambiqueiros de plantão. O doutor inclusive.

Assim dedico este texto a outro sonho reincidente que vez ou outra, por motivos ainda desconhecidos, teima em assombrar minhas mal dormidas noites de sono. Um pesadelo, na verdade. Sim, doutor, vou abrir uma pequena janela deste meu cérebro imperscrutável. Pare de salivar.

Pois bem, neste meu sonho eu descubro que sou um humorista. Mas não um péssimo humorista como o doutor deve ter precipitadamente imaginado (acertei?). Não, eu sou um humorista dos bons. Tão bom que minhas piadas são sempre pontuadas com uma claque histriônica ou pelo repique onomatopéico de uma bateria ("Turum-pshhh!"). Mas tão bom que nenhuma frase que sai da minha boca é levada a sério.

- Meus pêsames...

(Turum-pshhh!)

- Hahahahahahaha! Ai, Zebedeu, assim quem morre sou eu! Olha: estou até chorando!

- Toma. Eu tenho um lenço.

(Claque Histriônica)

- Pára! Estou quase me mijando!

O mais estranho é que a racionalização de que eu sou um comediante só surge após eu despertar. Durante o sonho nem me dou conta do fato, continuando a reagir com naturalidade às situações mais escabrosas. É como se eu estivesse surdo aos repiques e claques, como se estes fizessem parte da pós-produção de minhas memórias, reservada a quem assite, não em quem participa. Claro que isso acaba causando alguns erros de sincronia.

- ... independente do fato das oligarquias ruralistas alegarem que não estão conspirando para um monopólio da indústria e do comércio, mesmo assim vemos que...

(Claque)

- Huahuahuahuahuahua! Boa, boa! Marta, vem ouvir isso!

- ... sendo que a sociedade consumista do século XXI está cada vez mais fútil e, dia a dia, transformando produtos de consumo em artigos rapidamente descartáveis...

(Claque faz "Huuuuuuuuuuu!")

- Ai! Tá doendo tudo! Não agüento mais rir!

- ... concluímos que a causa de todos os males da humanidade é, a priori, a própria humanidade.

(Turum-pshhh!)

Com isso eu me torno a alma de todas as festas. As pessoas aguardam ansiosas por minha chegada, me cercando e despejando sinceras gargalhadas a qualquer merda que saia de minha boca.

- Posso pegar uma cerveja? Obrigado.

(Claque Histriônica)

Claro que inevitavelmente eu entro em uma crise existencial. Me irrito com aquilo, tenho ganas de ser levado a sério. Se não isso, ao menos ser ignorado quando falando banalidades. Viro um humorista amargo, sem graça. Ao menos para mim, é claro.

- Vocês são idiotas? Qual é a PORRA da graça?!?

(Pessoas rolam e choram de rir, sem conseguir responder)

- CARALHO! Estou falando SÉRIO! Será que dá para alguém parar de rir e me escutar?

Claro que ninguém escuta no meio da gargalhada coletiva. E mesmo se escutasse apenas pioraria a situação. Com isso eu simplesmente desisto de falar. Claro que não dá certo. Involuntariamente começo a performar pastelões mudos no melhor estilo Buster Keaton. Ninguém se agüenta. As risadas viram a trilha sonora de minha vida, junto com a claque forçada e os repetitivos repiques. Nem no banheiro tenho sossego, pois meus gases são expelidos de maneira sonora e, de algum modo, escatologicamente hilárias, fazendo a claque ir à loucura.

Normalmente é nesta fase que acordo. Irritado, frustrado e sem um pingo de senso de humor. E cinco minutos antes do despertador. Saio da sitcom sináptica e caio de cabeça na tragicomédia da realidade, onde a única diferença é a ausência de claques e repiques. E de risadas. Mas o resto é igual.

Pronto, doutor. Mais lição de casa para preencher sua vidinha vazia.

Espero que se divirta muito.

(Turum-pshhhhh!)

18.6.07

A Realidade é como um Crupiê Honesto numa mesa de Craps*

Doutor,

como sempre não vou me desculpar pelo recente sumiço. Por que de repente eu parei de narrar minhas desventuras e pensamentos esparsos? Desculpas haveria de monte: falta de tempo, excesso de trabalho, ausência de assunto, exagero de tédio. Uma autêntica senóide humorística e sem graça. Mas nada disso realmente interessa.

O que deve estar acontecendo, se o doutor me permitir a auto-análise, é que talvez eu já não esteja precisando mais deste espaço tanto quanto antes. Não fique chateado nem peça por abraços afetuosos. Às vezes acontece. Nada disso foi por sua culpa ou mérito. Tampouco dos tarja preta que você tão obsessivamente me receita.

Acontece que mudanças vêm e vão. Hoje já não sinto mais a compulsão de outrora por algo ou alguém que ouvisse as merdas que saem de meu cérebro. Por que? Sinceramente: não interessa. Se tudo pode mudar de uma hora para outra? Claro. Somos todos um pouco bipolares. Assiduidade e rotina são para os fracos de espírito e criatividade. Hoje em dia nada me irrita tanto quanto descobrir que não tenho nada para fazer.

Note que utilizei propositalmente o verbo 'irritar' ao invés de 'deprimir'. Isso é evolução? Pode ser. Você julga.

Neste final de semana disse a uma colega que estava brava por conta de uma briga com o namorado que a raiva é melhor que a tristeza, pois a raiva simboliza uma reação, mesmo que inócua, contra o que incomoda. A depressão, por sua vez, é um atestado de derrota espiritual. Mal sabia eu que aquela pequena epifania era bem melhor direcionada a mim do que a ela. Mas acabou valendo pelo abraço de retribuição.

Não, isso não quer dizer que minha situação melhorou. Pelo contrário. O que mudou foi que simplesmente cansei de ficar lamuriando e parti para a luta. Se vai dar certo? Não sei. Mas prefiro quebrar a cara lutando do que encolhido num canto chorando como uma menininha magoada.

Fique tranqüilo, doutor. Você não perdeu seu paciente menos predileto.

Não ainda.

* Para os imbecis que não compreenderam a analogia, a resposta é 'Imprevisível'.