8.7.05

Duzentos gramas

Doutor,

é, eu sei, dei uma desaparecida. A razão disto é inédita até para mim: estou de férias.

Sério! Não sei se quando eu voltar meu emprego ainda estará lá, mas a verdade é que eu estou há 2 semanas coçando o saco violentamente. Já encheu, sabe? Não que eu goste do trabalho, longe de mim, mas ficar sozinho por 14 dias tem sido um suplício. Já disse anteriormente: nem eu me agüento.

A boa notícia é que com o abono que eu recebi, deu pra acertar a conta telefônica. Agora tenho internet em casa, não preciso ficar pulando de cyber café a LAN House, nem disputar micro com nerd pobre.

E por que não escrevi nada até agora? Bom, porque só agora estou cansando um pouco de pornografia. Sério, doutor, foram quatorze dias de pau na mão. Visitei sites e mais sites de sacanagem de todo tipo. Gravei até um CD com o filme da Paris Hilton mandando ver no namorado. Sei que o doutor curte magricela que nem ela. Eu não gostei, pode ficar. Não que tenha recusado a punheta, mas não foi grande coisa. Valeu só pela sensação de invasão de privacidade (se bem que eu duvido que isso não tenha passado de um golpe publicitário da vaca...).

E o que me levou a escrever justo hoje? Bom, aconteceu uma coisa estranha de manhã, e acho que o doutor deveria saber. Sei lá, pra girar mais um eixo no cubo de Rubrik. Ou porque eu não tenho mais ninguém pra falar a respeito.

O lance foi o seguinte: acordei com um ímpeto de ir ao mercado. Não, não estou de brincadeira, é verdade. Eu tava começando a me achar um inútil de cuecas (o que não deixa de ser verdade) e tive um raríssimo impulso consumista. Queria comprar alguma coisa, só não sabia o que ainda. Então decidi ir ao mercado. Não, no shopping eu não vou. Aí é pedir demais.

Para mim, mercado é igual banho no frio. A gente nunca quer ir, mas quando está lá, até que se diverte. Gosto do cheiro do corredor de produtos de limpeza, meio pinho, meio cânfora, muito cloro. Gosto do corredor de papelaria, mais por impulso incompreensível do que realmente interesse. Não gosto do corredor de dietéticos, mas é lá onde encontramos as peruas mais gostosas. Nem chego perto da sessão de hortifruti. Não gosto de feira.

Pois eu estava comendo um pastel de 1 real horroroso, quando alguém gritou:

- Zebedeu?

Ignorei, é claro. Quem em sã consciência iria me cumprimentar com tanta felicidade?

- Zebedeu! - continuou o cara. - É você mesmo! Meu, a quanto tempo!

Aí não dava mais pra ignorar. Virei, e de cara reconheci o figura. Era um chato do meu tempo de colégio. Oitava série, se não me engano. Qual era seu nome? Não tinha envelhecido um dia. Devia ser assíduo do corredor de dietéticos. Respondi com minha habitual simpatia:

- Hummm...

- Cara, quanto tempo! Você não mudou nada! - mentiu. Odeio esse tipo de papo.

- É...

Ele aparentemente entendeu meu desprezo como um convite. Encostou o carrinho do meu lado, e sentou no banco. Não pediu pastel. Não ofereci um teco do meu.

- E aí, o que conta? - perguntou ele, empolgado demais. - O que você anda fazendo?

- Escorrendo a porra da vida, gota a gota.

- Ahahaha! Você continua o mesmo! Ainda está escrevendo?

- Só pro meu psicanalista. E eventualmente um e-mail de reclamação.

- E-mail?

- É. Você sabe. Correio eletrônico.

- Desculpe...

- Esquece. E você, o que tem feito? - perguntei, nem sei por quê.

- Não muito. Sabe como é, depois do que aconteceu...

- Não, não sei. O que aconteceu?

- Não te contaram? - sacudi a cabeça. - Fui assassinado. No dia seguinte à formatura.

É mesmo. Não lembrava disso. Foi num assalto neste mesmo mercado. O babaca tentou argumentar com os bandidos. Recebeu duzentos gramas de chumbo na cabeça como resposta.

- Sinto muito.

- Não, não sente.

- Verdade. Desculpe.

- Não precisa...

Era só o que me faltava. Encontrar um fantasma no mercado. Esse é o resumo da minha vida social, doutor.

- Sabe - começou ele - eu te admirava muito.

- Arrã...

- Sério! Eu adorava ler teus poemas. Eles tinham um toque imaturo, mas ao mesmo tempo eram cínicos e profundos. Lembro que não faltava em um de seus recitais. O que aconteceu com o povo que ia nos recitais do grêmio?

- Morreram todos. Bala na cabeça num mercado de bairro.

Ele riu.

- Você não muda...

- E isso é bom? Se for, você está ótimo. Continua por aqui, empurrando esse carrinho com, deixa ver, Amendocrem?!?, por quanto tempo?

- Doze anos. Mas eu não me arrependo. Sabe por que eu fui conversar com o bandido?

- Imbecilidade crônica?

- Não. Quando estava no chão com o resto dos clientes/reféns, pensei: "É isso! É essa a razão de toda a sua vida. Você precisa deter esse assalto, mas não como um herói de filme americano. Não, você vai iluminar a mente destes pobre-coitados com suas palavras".

- Pra você ver como funcionou. Virou estatística.

- É o que eu imaginei que você faria. Não me olha assim, é verdade! Eu tinha seus versos em minha mente. Sabia que seu cinismo, sua morbidez, eram apenas para escancarar o que há de ruim no mundo. No fundo, seus versos deixavam uma mensagem otimista. Você acreditava no mundo.

- E o mundo, o que fez? Revidou. E você morreu. Não, cara, esse lance é coisa de moleque. Eu dava uma de poeta pra conseguir mulher. Não tinha nada de profundo. Era merda, pura e simples.

- Triste ouvir isso. Tenho certeza que você queria mudar o mundo com seus versos, mas no final tua ironia acabou envenenando teu cérebro. O cinismo abstrato se tornou concreto.

- É. Não penso muito a respeito, e nem com essa profundidade, mas é isso aí. E você ajudou muito nisso.

- Desculpe.

- Foda-se.

Levantei e fui embora. Não comprei nada (apesar de ter ficado curioso se eles ainda vendiam Amendocrem) e vim pra casa.

Doutor, será possível que aqueles duzentos gramas de chumbo tenha matado duas pessoas ao invés de uma?

Se for assim, que vantagem tenho em estar vivo? O cara (que eu realmente não lembro o nome) pelo menos tem algo a se orgulhar, mesmo morto.

E eu?

Não, doutor, não vou levar nenhuma poesia na próxima sessão. Pode esquecer!