19.3.07

O Inferno Diminutivo

Doutor,

havia alguma coisa errada, mas estranhamente o errado parecia mais certo que o certo em questão. Mais ou menos. Mais pra mais do que pra menos. Pelo menos.

Seis da manhã. O sol se recusava a tirar a cara bolachuda pra fora de seu esconderijo cumular. Mas tinha luz, tinha luz e aquilo me incomodava. Não sabia o que estava fazendo ali, naquela rua, àquela hora, daquele jeito. Boa noite, Cinderela, teu príncipe é um travesti fulambento que só te beijaria se você fosse simplesmente um LU-XO. Na boca do lixo o luxo é relativo. E cospe giletes quando os gambés enfiam no camburão. O que eu estou fazendo aqui, cercado de Shirleys, Jennifers, Pamelas e perucas cor-de-rosa? Não, linda(o), pra mim chega de doce. Mais um e não volto. O Smurf ali disse que é melhor eu parar, e se tem uma coisa que eu confio são smurfs. Não pergunta por que pois eu respondo antes de você perguntar. Olha só que viagem: uma só mulher na vila e o bebê smurf não é filho dela! Tem noção que aquele bebê ranhento pode ser o messias dos Smurfs? Aquele que irá livrá-los do terrível jugo de Gargamel. E além disso nenhum deles estupra a loirinha, mesmo não tendo nenhuma mulher na vila. Não disse? Confiança. Ou será que estupram o bebê? Deve ser por isso que ele chora tanto...

Quem me disse isso? O secador de mãos do banheiro. Nunca conversou com ele? Tá, ele geme um pouco demais e tem um mau-hálito terrível, mas é gente fina. E é só você passar a mão que ele se abre numa boa. Ei, que preconceito é esse? Justo você? Ele bem que me disse isso também. Preciso respirar um pouco. Me solta, porra! Eu ainda lembro como andar. Eu acho. Claro que acho. Olha lá, achei. Viu, bestalonha? Agora sai do meu pé.

O inferno custa cinco paus para entrar. Barato pra caralho. O Caronte não é barqueiro, é leão de chácara. Só que fala numa língua ininteligível. Uma soma de todas as línguas vivas e mortas. Ao molho de saliva e bílis. Não aceita minhas moedas cuspidas. Mas me deixa entrar e desço a espiral. Descubro que no inferno só tem um círculo e é fechado. É aqui mesmo, é aqui sim, tenho certeza. Orgiástico mas com pudores hipócritas. Querem beijo na boca. Eu, não. Eu quero uma cerveja. No inferno só tem Itaipava sem camisinha. Sexo segura? Então me larga que a cerveja é mijo mas eu não quero porra nenhuma.

Aqui, navegando no meio do lixo, da escória, da ralé da humanidade eu me sinto um pouco pior do que o normal. Eles se divertem, pulam, dançam, sorriem com as bocas forradas de dentes podres e resquícios de sucos penianos. Ninguém senta, não por ausência de cansaço mas de condições anais. Não pense em ânus. Só no teu, mas cola ele na parede. Opa, desculpe extintor vencido! Nem te vi. Quer uma cerveja? Te dá gases? Como assim? Ah, pó químico? Eu também. Sou um pó ressequido de químicas sem mol. Já falou com o Avogadro? Seis vírgula zero três vezes dez elevado à vinte e três vezes. Ele seria o cara que te quantificaria. Não, ninguém te qualifica enquanto não for necessário. No seu caso é fácil, é só botar fogo no inferno. Posso acender um cigarro? Promete que não vomita em cima de mim?

Algo dispara em minha mente demente cacófata. Corre!, grita o demônio em meu cerebelo. Corre que dá tempo de fugir. Não quero fugir. Eu mereço estar aqui. Finalmente fiz por merecer alguma coisa. É confortável no meio da androginia. Me sinto navegando numa gravura profana de Escher. Ninguém sabe onde começa e qual o fim. O fim é aqui. No começo desse circuito indefinido. Um Auryn onde cobras comem cus alheios longe dos olhos da sociedade castrante. Também temos o direito de dar risada, mesmo sabendo que fora do inferno a vida é uma redundância.

Ainda assim eu corro de volta para a luz da rua e para o conforto da alienação. O coração disparado e as costas suadas. Subo pela espiral e atravesso o umbral do Caronte que vocifera em latim/hebraico/vietcongue/paraibanês. Quase sou atropelado ao chegar à rua. Buzinas me xingam. Cadê meu carro, cadê meu carro, cadê minha muleta de vida? Quinze paus, mais caro que o inferno, literalmente, e estou ziguezagueando na rua. Não sei como cheguei ali, não sei como consegui sair, não sinto orgulho, não sinto depressão. Hoje não. Só amanhã.

Só hoje.

Acho que misturei algo errado, doutor.

Mas deu terrivelmente certo.

Se é que o doutor me entende.