Doutor,
ela podia ser feia. Podia ser gorda demais, daquelas boas para destrinchar na faca. Ou magra demais, para que eu passasse alguns dias só mascando seu tutano. Deformada, para que eu aloprasse psicologicamente sua já destruída auto-estima. Vesga. Caolha. Com protuberâncias ou pelos em lugares estranhos. Verruguenta. De cabelos ruins e buço gritante. Bochechuda, para levar uns bons tabefes. Corcunda. Manca, para que eu me divertisse ao vê-la se desequilibrando numa patética tentativa de fuga. Podia. Claro que podia.
Ela podia ser burra. Totalmente ignorante. Uma besta quadrada até para os padrões mais permeáveis. Cheia de preconceitos, achismos e teorias surrupiadas de canais abertos de televisão. Uma autêntica anta, que não conseguiria conversar dois minutos sem soltar uma gafe histórica. Podia falar 'menas', 'a nivel de' e extrapolar todos os limites do gerundismo. Podia só ler revistas de fofoca e Paulo Coelho. Podia achar que se cortasse o cabelo na lua cheia um santo qualquer iria tirá-la do atoleiro.
Ela podia gastar todas as economias em cartomantes e videntes. Podia ser evangélica, adventista, católica ou qualquer outra merda dessas. Ela podia acreditar em duendes, fadas, elfos, morlocks ou em espíritos reencarnados de guerreiros da Lemúria. Pode ter chorado assistindo "Quem somos nós?" ou tido várias idéias cretinas com "O Segredo". Podia ter uma amiga macumbeira e ser viciada em fazer simpatias esdrúxulas. Podia ter medo de ter idéias próprias. Podia ser domesticada. Podia ser uma total ameba.
Podia sonhar em casar e em constituir família. Podia achar que o máximo de sucesso seria se ela fosse mãe de um casal de moleques ranhentos e estúpidos. Que ter um marido gordo, mal-humorado e que não sai de dentro do puteiro é bom, pois ele traz dinheiro pra casa. Podia achar que chorar sozinha na cama de madrugada era um preço barato pela felicidade. Que masturbação era uma aberração do demônio. Que drogas são o mal da sociedade. Que o máximo de arte que ela tem acesso é novela. Que ela sofre nessa vida mas terá uma muito melhor depois de morrer.
Além de tudo isso ela podia ser uma pessoa boazinha. Querida por todos. Uma autêntica flor, que nunca na vida soltou um único palavrão. Podia ser delicada, cheia de pudores e frescuras. Podia só fazer amor com as luzes apagadas. De babydoll. E só em ocasiões especiais, pois sexo por prazer é pecado. Podia lavar a boceta com água benta enquanto o maridão ronca alto no quarto. Podia fazer gargarejo e usar Vagisil. Podia fazer parte de um grupo de senhoras de bairro. Podia ajudar em obras assistenciais. Podia ser canonizada em vida. Podia envelhecer mal. Ficar varizenta. Caída. Assustadora. Mas adorável. Podia ser mais uma velhinha horrenda e adorável da sociedade.
Podia ter esqueletos no armário. Taras particulares nunca extravasadas. Traumas idiotas. Sonhos desfeitos por inação. Podia ter uma paixão não correspondida na juventude. Podia ter vontade de se matar de vez em quando. Ou de matar outros. Podia ir se confessar depois. Podia se sentir bem com isso. Satisfeita.
Podia tanta coisa.
Podia.
Só tem uma coisa que ela não podia ser.
Ela não podia ser ela.
E nem eu tão covarde.
5.12.07
Antiplatonismo aplicado
Esporrado por Zebedeu às 15:12
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