Doutor,
eu subi por um elevador do tamanho de uma cabine telefônica. Espelho de um lado, câmera do outro, e eu no meio sem saber onde não olhar. Respirei aliviado quando a porta abriu e eu saí. No minúsculo saguão havia quatro portas. Toquei a campainha de uma delas. Um cachorro estridente disparou. Alguém grunhiu dentro do apartamento, xingou o cachorro, e destrancou a porta. Duas voltas. Abriu. Me reconheceu na hora. Era a primeira vez que eu o via.
Acho que passamos um minuto parados. O cachorro perdeu a paciência e disparou em direção à minha perna, mas apenas para cheirá-la. Olhei para baixo.
- Caralho, você tem um POODLE?
- É uma longa história - respondeu ele, aproveitando a quebra do anti-clímax. - Você quer entrar?
Dei uma sacada nele antes de entrar. Era alto. Devia ter um e noventa. Os cabelos longos rebeldes lutavam contra um elástico em sua nuca. A barba era de três dias, no mínimo. A barriga de trinta anos. A bermuda parecia uma relíquia oitentista. Estava descalço. Entrei.
O apartamento era pequeno, mas era novo, como o prédio. Pequeno burguês. Paredes cor de creme. Móveis pequenos para caber no espaço desproporcional ao habitante.
- Você mora sozinho? - perguntei, nem sei por que.
- Não. Minha mulher tá no quarto, dormindo...
- Puta que o pariu. Você é CASADO?
- Sou. Senta. E por favor, fala baixo. Minha filha pode acordar...
- Você tem FILHA? Merda, me arruma uma bebida!
Ele foi pisando pesado até a cozinha. Pegou duas latas de cerveja. Eu ia abrir a minha quando uma sombra caiu no meu colo. Quase vomitei as tripas. Era a porra de um gato.
- Um GATO PRETO? Cacete, isso aqui é um zoológico?
- É uma gata. Deixa que eu pego...
- Pode deixar. Só não deixa esse poodle chegar perto.
- OK...
Bebi a cerveja. Estava com um gosto estranho. Ele também achou. Levantou a lata e olhou o fundo. Xingou e levantou-se de um pulo.
- Tá vencida. Desculpe. Não costumo beber em casa...
- Você NÃO BEBE EM CASA?
- Não normalmente. Mas eu tenho uma garrafa de Chivas fechada. Vou pegar uma dose pra gente.
- Faz isso.
Ele foi, andando do jeito estranho dele. Era desengonçado com aquele tamanho todo. Cintura muito larga, ombro muito estreito. Parecia uma pêra gigante. Um pouco corcunda. Nada do que eu imaginava. Perguntou se eu queria gelo, e respondi que sim, uma pedra. "Que nem eu", reconheceu. Voltou em dois minutos com os copos. Dei uma bicada. Coisa boa.
- E aí? - perguntou ele, depois de também dar uma bicada.
- Eu que pergunto. E aí? Que história é essa?
- Não sei. Acho que eu te chamei...
- Não, eu só vim pra cá. Nem lembro como. Só lembro de ter aparecido na tua porta. O que isso significa?
Ele deu mais um gole: - Não sei bem. Pode não significar nada. Pode significar um monte de coisa...
- Puta que o pariu...
- Tá, desculpe. Sei que você não gosta de nada dúbio.
- Cara, eu sou a dualidade em pessoa. O Homem Dialética! E esse lance em si tá parecendo esquizofrênico demais, até mesmo para mim. Como é que nos encontramos, e por que?
- Como eu não sei. Por que? Talvez tenhamos atingido essa maturidade. Você, pelo menos. Talvez seja a hora.
- Para um ateu cético você parece ter um monte de explicação mística.
- Não se aplica a este caso. Pergunta pro teu analista.
- Pode deixar.
Dei mais um gole, e curti a queimação do malte em minha garganta. Cacete, não tomava um uísque decente fazia alguns anos. E aquele filho da puta ali, com uma garrafa inteira parada...
- Meu, eu só quero entender uma coisa - respirei. - Por que?
Ele pensou por alguns minutos. Suspirou, e quando o fez o peito de galinha se estufou um pouco.
- Não sei. Aconteceu um dia. Chamo isso de espasmo. Acontece de vez em quando, e não dá pra controlar. O problema é que na maioria das vezes acontece no trânsito, ou no trampo.
- Que é que você faz da vida?
- Eu faço programas...
- O QUÊ?!?
- ... de computadores. Não acredito que você caiu nessa piada.
Dei um riso. O primeiro da noite.
- O pior está por vir, e não é piada: trabalho numa seguradora.
Aí eu ri de verdade.
- Então é isso? Eu sou apenas uma válvula de escape pras tuas frustrações?
- Sim, no início. Foi por isso que não divulguei pra ninguém no começo. Depois, bom, depois virou um passatempo. Agora, já nem sei mais. E acho que é por isso que você está aqui.
Sacudi o gelo em meu copo. Ele entendeu a deixa e me serviu mais uma dose.
- Acho que não - disse eu, depois de mais um gole. - Acho que é outra coisa.
- Pode ser. Ou pode ser os dois. Você claramente assumiu uma proporção que eu nunca imaginei. Talvez esse seja o motivo de sua vinda. E, bom...
Ele respirou fundo.
- Depois o enrustido sou eu... - alfinetei.
- É, que moral eu tenho?
Virei o uísque e me levantei. Ele me acompanhou.
- Já vai?
- Já. Deu no saco. Cara, vou te confessar uma coisa: odiei te conhecer. Você é o maior babaca que eu já vi, e olha que a lista é grande. Sei lá, você me dá nojo.
Ele baixou os olhos.
- Bundão do caralho. Se tem alguma coisa a fazer ou dizer, por que não vai lá e faz ou diz?
- Olha quem fala...
- Se eu não falo, se eu sou uma granada de rancor e depressão com o pino encravado, é tudo sua culpa. E você, que desculpa tem?
- ...
- Vai se foder!
Saí pela porta cor de creme e entrei no elevador-paranóia. Não olhei para trás.
Doutor, o que isso significa?
1.8.05
O Encontro
Esporrado por Zebedeu às 08:28
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