Doutor,
ontem, quando saí do trabalho, estava com uma vontade louca de encher a cara. Não, sem nenhum motivo além do habitual. Só estava a fim de me entorpecer, de entrar num estado de "foda-se" geral. E, não sei por que, não estava a fim de fazê-lo sozinho em casa. Por isso caminhei pelo centro até encontrar um bar. Não demorou muito.
O bar era também um restaurante, mas nada chique, pelo contrário. Era velho e novo. A parte dos fundos era velha e acabada. Tinha cara de pub, mas um pub que nem irlandês em dia de São Patrício gostaria de entrar. A parte da frente era nova. Tinha um balcão e tamboretes brilhando de novos, e a parede de ladrilhos brancos e pretos como num tabuleiro diagonal contrastando com a pintura verde-ânsia descascando dos fundos. Na frente, um monte de pós-yuppies afogando suas depressões em shakes de frutas e sanduíches de atum. No fundo, apenas um velho sentado numa banqueta. Sua posição era estratégica para assistir um tape de uma luta de boxe que passava na televisão pendurada na parede, mas ele não parecia realmente interessado nela. À sua frente, no balcão de madeira velha, uma garrafa de vinho tinto, um copo meio vazio, um maço de cigarros amassado e um cinzeiro lotado. Sentei ao seu lado. Cumprimentei-o com um grunhido vago. Ele, sem me olhar, resmungou.
Pedi ao garçom uma cerveja para começar. Ele me trouxe, mas antes de sair deu uma olhada meio furiosa ao velho. Devia estar lá há tempos. O velho não pareceu se importar.
- Quem está lutando? - perguntei, nem sei por que. Não gosto de boxe e nem de conversas. Mas aquele velho, não sei, parecia atrair um papo.
- Algum mexicano alucinado contra algum queixo de vidro do Brooklyn.
- Meu nome é Zebedeu.
Ele finalmente me olhou depois dessa. Seu rosto era marcado, rústico, quase deformado pelas rugas e cicatrizes de acne, que nem a barba de uma semana conseguiam esconder. Os olhos estavam embaciados e ébrios, mas ao mesmo tempo mostravam uma lucidez assustadora, mesmo atrás de um par de óculos muito grossos.
- Hank - grunhiu ele. Não apertamos as mãos.
- Gringo?
- Yeah, baby.
Agora eu notara o que ele estava fazendo. Com uma bic ele escrevia algo num guardanapo.
- O que é? - perguntei, apontando o guardanapo com o queixo.
- O Poema.
- Posso ler?
- Não.
- Por quê?
- Ainda não está bêbado o suficiente.
- Ah...
Virei a cerveja, e mandei trazer uma dose de uísque. Não, o mais barato, isso. Sem gelo.
- Agora eu gostei - disse o velho.
Tomei de um gole. Uísque vagabundo, desceu que nem uma gilete. Chamei outro.
- É escritor? - perguntei.
- Sou.
- Famoso?
- Pode crer.
- E o que você escreve?
Ele parou o Poema para pensar a respeito. Largou a caneta e coçou a barba. Depois entornou o resto da bebida e encheu novamente o copo.
- Contos. Romances. Poemas. Ah, e já escrevi o argumento de um filme.
- Hollywood?
- Yeah, baby.
- Sucesso?
- Poderia ter sido melhor.
- Qual o nome?
- A Dança de Jim Beam.
- Nunca vi.
Ele deu de ombros.
- E sobre o que você escreve?
Eu o importunara o suficiente para que ele desistisse do Poema. Retirou os óculos e esfregou os olhos enrugados.
- A vida, cara. A porra da vida. A minha vida.
- Eu também...
- É escritor?
- Não, mas escrevo sobre minha vida. Mas para ninguém ler, além do meu terapeuta.
- Nunca escreva para leitores. Escreva sempre para você mesmo. Leitores são todos uns imbecis que fodem com o pau dos outros. E por que você faz terapia?
- Ordem judicial.
- Putz. Eu preferia a cadeia.
- Tem dia que eu também...
Voltamos às nossas bebidas.
- Já fui poeta - eu disse. - No colégio.
- Dos bons?
- Não. Medíocre.
- Bom...
- Por que?
- Os grandes poetas morrem em penicos fumegantes de merda.
- Você é um poeta...
- Não. Eu apenas batalho O Poema. Me impede de enlouquecer.
Eu já estava começando a sentir os efeitos do álcool. Meu rosto estava amortecido, meus olhos enevoados. Pedi mais uma dose, quase engasgando com minha língua enrolada. Ele acendeu mais um cigarro. Na televisão mudaram o canal para o depoimento de um deputado numa comissão de algum tipo. Ele reclamou, mas foi ignorado.
- Merda de política. É o mesmo que foder cu de gato.
- Bebamos a isso!
Viramos nossos copos. Ele tornou a encher o dele. Eu abanei o garçom, acho que pedindo mais uma.
- Você não está no lugar errado para escrever?
- Como assim?
- Sei lá, parece estranho...
- Aqui tem bebidas?
- É um bar...
- Então é o lugar certo.
Passamos quase duas horas assim. No final estava tão bêbado que qualquer descrição minha seria imprecisa. Não que tivéssemos exatamente tido uma conversa realmente construtiva. Na verdade, mais bebemos do que falamos. O estranho é que ele emborcava uma atrás da outra, e sua garrafa nunca esvaziava. Mas eu posso ter ficado tão alterado que nem percebi o garçom trocando as garrafas. Sei lá. Lá pela meia noite saímos, um apoiando no outro. Paramos na porta. Ele me chamou um táxi. Perguntei se ele queria dividí-lo.
- Não, obrigado. Minha mulher está vindo me buscar. Ou assim espero.
- O Poema...
- Hum?
- Já estou bêbado o suficiente para ler o Poema?
- Meu amigo, você ainda tem muitos copos a beber antes de conseguir lê-lo. Eu que sou alcóolatra há uma vida inteira ainda não consigo completamente...
- Você os escreve...
- É. E eles são bons, pode acreditar. Mas é por isso que eu batalho neles. Você, bom, você ainda não está pronto. Volte pra tua terapia. Volte a escrever em teu computador. Quem sabe um dia?
- Velho filho da puta...
- Com um puta orgulho.
E assim foi. Fiz um monólogo ébrio ao motorista do táxi, que me deixou em casa sem dizer palavra. Subi para meu apartamento e caí na cama. Hoje, dor de cabeça e cabo de guarda-chuva.
E a sensação que eu desperdicei uma oportunidade de ouro. Não sei por quê.
3.8.05
O Velho Bêbado
Esporrado por Zebedeu às 07:57
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