25.8.05

Sobre Medíocres e Bobos

Doutor,

muitas vezes, durante nossas conversas, tratamos sobre méritos e realizações, objetivos e metas, e todas essas merdas motivacionais que você recita de cor e salteado que nem um papagaio de piada. Algo até dá pra aproveitar, mas a maioria é lixo puro. Papo manteiga de babaca iludido. Cretinice pseudo-nova-era-pós-yuppie-suicida.

A maioria de nós quer realizar algo na vida. Para alguns, é formar uma família, com filhos, bichos, remelas, fraldas sujas, dívidas e carnês das Casas Bahia. Para outros é ser ricaço, viver num loft na Paulista, ter um carro alemão ou um italiano (que não seja um fusca ou uma Romisetta), comer modelos anoréxicas, andar com roupas caras e trecos tecnológicos inúteis, como palms e celulares que cantam, dançam e fazem café (alguns, segundo ouvi falar, até pagam um boquete, mas os créditos acabam rapidinho...).

E tem os que querem mudar o mundo, seja através de uma obra filantrópica qualquer, seja através da arte. Sempre começam humildes, juntando uma dúzia de felinos gotejados tão idealistas como ele, e levantam uma bandeira qualquer, dispostos a dar a vida pelo seus ideais ou por sua mensagem.

Não, não tenho nada contra eles, doutor. Cada um faz o que quiser do próprio rabo. É tudo parte dessa massa caótica que se auto intitula humanidade. Não, não ligo para nenhum desses. Poderiam todos morrer numa explosão vulcânica que eu não soltaria um único suspiro de espanto. Talvez torcesse o canto de meus lábios num sorrisinho sardônico, mas só isso.

O problema não é começar um movimento. O problema é acreditar que, já que você o começou, e acabou crescendo, virou verdade absoluta. É aí que a ideologia vira dogma, e todo dogma é um lance perigoso. Sim, se seguirmos meu silogismo, todo ideal é perigoso. É simplista, mas é isso aí.

A maioria dos que começa algo vê seus sonhos desabarem rapidamente, e em breve já estão prontos para outra (pois para estas pessoas, a vida nada mais é do que segurar uma bandeira rasgada ao vento, nem que seja em defesa dos direitos dos leucócitos do macaco azul da Tanzânia, cuja extinção não afetaria nem um culhonésimo da evolução darwiniana). O problema está nos que são bem sucedidos. Não tem jeito, o sucesso sobe a cabeça, que fica inchada e prepotente. Pode ser que o tal projeto não signifique nada de útil (e, em sua imensa maioria, é o que acontece, pode acreditar). Mas o babaca acha que é um fodão, pois se ele tinha razão a respeito de uma coisa, tinha a respeito de tudo.

Aí aparecem os lambedores de cu de plantão (na maioria, pessoas que tentaram e não conseguiram). E a idéia vira militância. Vira piquete. Vira fanatismo cego. Vira curso imersivo em hotel-fazenda. Vira livro, revista, jornal, brinde, remédio, gibi, fantasia, e toda merda de merchandise que se possa imaginar. E o ego do iniciador cresce cada vez mais. Ele vira um emblema, um símbolo, uma realidade própria, cujas vontades rapidamente se tornam verdades indiscutíveis e pelas quais todos devem lutar, sob a penas de serem deixados de lado na "revolução".

Mas, invariavelmente a casa cai. Ninguém é unanimidade, nada é eterno. Nem Jesus, seu católico de merda! Buda, em comparação, é bem maior, e ambos já tem o barbudo-de-turbante no calcanhar. Aliás, o Jesus católico foi uma criação de um idealista, igual aos que eu descrevi acima. O gordinho e o barbudo-de-turbante também. E um dia, todos eles irão desabar, principalmente se surgir outra ficção atraente o suficiente para magnetizar as mentes fracas dos lambe-cus de plantão.

Bom, fugi do assunto. O lance é que, quando a ideologia cai, o criador (ou seus seguidores mais próximos) é o que leva o maior tombo. Ele percebe que sua torre de marfim nada mais era do que uma palafita de junco. E percebe que não só ele se deu conta disso, mas também todos os seus pretensos "fiéis seguidores", que rapidamente debandam como ratos de navio adernando, à procura de outro trouxa para ser sugado (sem conotações sexuais na maioria dos casos).

E o tombo é feio. Poucos sobrevivem. No final apenas restam tentativas patéticas de reacender a glória perdida, tal qual um viciado em heroína atrás de seu barato inicial. É triste, é desolador, é ridídulo. Depois vem os ataques gratuitos, numa metralhadora desregulada disparando balas de merda. E a cada nova manobra, mais o puto afunda.

É de morrer de rir.

É por isso que eu não dou a mínima. Não levanto bandeiras, não sigo pessoas nem seus ideais. Fico na minha, sentindo meus órgão decaírem paulatinamente, esperando o fim dessa existência inútil. O mundo pertence aos idealistas. Que façam ótimo proveito, cada um no seu tempo ou todos juntos, numa guerra-santa-ideológica-ganaciosa-ridícula.

Não, doutor, esse texto não é sobre o PT (apesar de se aplicar como uma camisinha japonesa). O senhor sabe o que penso de política.

Não, esse texto é para você, cara. É, você mesmo, que está bisbilhotando meu texto neste momento.

Pensa nisso, mas não me venha encher o saco para fundar uma Igreja Depressiva do Pensamento Cínico, pois senão eu crucifico sua mãe de ponta cabeça, empalo tua irmão com uma tora e explodo tuas negas na seção de legumes de um supermercado lotado.

Entendeu agora, doutor?

19.8.05

Ora, Marshmallows!

Doutor,

o relato a seguir é baseado num relato que se diz baseado em um estudo sério. Desta maneira, pode crer que é bobagem. Das grossas. Mas mofifiquei-o de acordo com minhas noções deturpadas de realidade.

A experiência era a seguinte: em um ambiente controlado foram isoladas 10 crianças. Na frente de cada uma delas foi colocado um pedaço de marshmallow. Aí as crianças foram instruídas: caso comessem o marshmallow, não receberiam outro. Se conseguissem controlar-se, em pouco tempo teriam o dobro de marshmallows. Caso contrário, ficariam só com um.

Dito isso, os enjalecados saíram do aposento, tais quais Heisenbergs ou Pavlovs contemporâneos, e começaram a monitorar os fedelhos. Quatro crianças nem pensaram duas vezes, e engoliram o marshmallow quase sem mastigar, suspirando de prazer. Um até arrotou. Três controlaram-se por alguns minutos, e em seguida comeram os seus doces. Um deles roubou o doce do outro (que teria conseguido se controlar, caso não fosse roubado), que começou a chorar. Apenas um conseguiu controlar-se e não comeu seu doce. Ele e o ladrão comeram mais um após o retorno dos monitores.

Vinte anos depois, foram atrás das crianças (agora adultos), e abaixo o que aconteceu com eles:

- Dos quatro que comeram sem pensar, o que arrotou morreu de obesidade mórbida (que nem o Papai Noel da Xuxa), dois viraram pessoas completamente medianas, e um foi morto por uma bala perdida (mas, de acordo com os parentes, ele não era conhecido pela inteligência, mas pelas pinturas abstratas, que valorizaram horrores após sua morte).

- As três que se controlaram parcialmente se uniram anos depois e montaram uma banda de punk rock. O baixista se apaixonou pelo baterista, e juntos eles assassinaram o vocalista, que se achava o dono da banda. O baterista foi morto na ocasião da prisão, pois ficou indeciso demais para saber se se rendia ou revidava aos tiros. O outro, por mais que declare-se macho, já rodou na mão de meio presídio, e está em fase terminal de AIDS.

- O que teve o marshmallow roubado sofre com bulimia. Se sente indigno de comida. Duas vezes por semana ele visita um psicanalista, que sempre o convence a não se matar pelo menos até a próxima sessão. Vomita até antidepressivos.

- O que roubou o marshmallow vive atualmente em local desconhecido. Foi eleito para o congresso, e fugiu quando descobriram seu desfalque. De acordo com a Interpol, vive tranquilamente nas Ilhas Canárias, provavelmente cercado de espanholas de bikini.

- O único que resistiu foi expulso da escola na 5ª série depois de acobertar o crime de um colega (por coincidência, o congressista ladrão de marshmallows), e hoje é frentista. Seu vocabulário se resume a "Quanto, doutor?" e "Posso checar o óleo?". Não consegue tomar uma decisão audaciosa, pois morre de medo de quebrar regras estabelecidas.

Morais da História Cretina:

- Comer Marshmallows não faz a menor diferença para sua vida futura.

- Inteligência Emocional é uma asneira sem tamanho que deveria se abolida junto com acupuntura e homeopatia.

- Ladrão vem do berço. E o crime compensa, sim.

E eu, doutor?

Bom, eu não gosto de marshmallows.

15.8.05

Esperança

s. f., ato de esperar;
tendência do espírito para considerar como provável a realização do que se deseja;
a segunda das virtudes teologais;
o que se espera;
expectativa;
suposição;
probabilidade;
Zool., inseto ortóptero locustídeo de cor verde;
estar de -: estar no período de gravidez;
dar -s: dar mostras de vir a ser distinto em alguma coisa.


Tá, e daí, você me pergunta, doutor. Bom, sinceramente, não sei.

Não sei o que esperar mais da vida.

Quando a gente entra numa certa idade, já sabe que a partir dalí é ladeira abaixo, como uma montanha russa cujo final é uma barreira de explosivos. É uma metáfora idiota e batida, mas nada se aproxima mais da verdade. Levamos anos para chegar ao topo, o vagão fazendo tlec-tlec-tlec, e a gente com um sorriso bestalhão de espectativa na cara, pois nos dizem durante toda a subida que quando chegarmos ao topo tudo será melhor, diferente. Pois bem, eu cheguei ao topo, e sinceramente não gostei nada do que vi. E garanto que 99% das pessoas igualmente não apreciam, apesar de que destas, 90% esboçam um sorriso amarelado, e não perdem a tal da "esperança", mesmo sabendo que em momentos os trilhos entrarão em uma rota descendente vertiginosa, e tudo o que eles fizeram pra chegar até ali será esquecido numa fração de momento.

A cada ano os anos passam mais rápido. Já elaborei uma teoria a esse respeito (eu elaboro teorias demais): quando temos 2 anos, 1 ano é a metade de nossa vida. Quanto temos 10, a proporção já é de um décimo. Aos trinta, um ano não passa de 0,033333335 de vida. E contando. Entramos na fase dos anos dizimados.

Nunca vou ganhar um Nobel por essa teoria de merda.

É isso que eu percebi. Que quando chegamos ao topo e não achamos nada, perdemos a esperança. Eu cheguei ao meu topo. Daqui pra frente, nada mais. Não vou ficar rico, a não ser que eu ganhe na loteria, mas sou muito alto para isso. Não vou encontrar o amor da minha vida, pois ela já deve ter perdido a paciência de esperar que eu aparecesse e já está fodendo com outro. Sexo, a partir de agora, só por pena ou com prejuízo monetário. Filhos? Pra quê? Por que eu seria tão calhorda ao ponto de jogar mais inocentes nessa montanha russa sem sentido? Aliás, qual o sentido de uma montanha russa?

Não. Acabou. No meu caso, a esperança não é mais o que o dicionário prescreve.

Tirando, é claro, o inseto ortóptero locustídeo de cor verde, que deve ser massa.

Queria esmagar um desses com uma sandália havaiana surrada. E cuspir em cima do exoesqueleto.

E daí sairia na janela e gritaria: "Eu matei a porra da esperança que invadiu meu quarto!"

Deixaria o cadáver no batente da janela.

Como um aviso para que outras esperanças nem ousem se aproximar de minha vida.

Doutor, se vier com papinhos consolatórios e positivistas, solto um arroto de feijão no seu nariz e um peido quente no seu divã.

3.8.05

O Velho Bêbado

Doutor,

ontem, quando saí do trabalho, estava com uma vontade louca de encher a cara. Não, sem nenhum motivo além do habitual. Só estava a fim de me entorpecer, de entrar num estado de "foda-se" geral. E, não sei por que, não estava a fim de fazê-lo sozinho em casa. Por isso caminhei pelo centro até encontrar um bar. Não demorou muito.

O bar era também um restaurante, mas nada chique, pelo contrário. Era velho e novo. A parte dos fundos era velha e acabada. Tinha cara de pub, mas um pub que nem irlandês em dia de São Patrício gostaria de entrar. A parte da frente era nova. Tinha um balcão e tamboretes brilhando de novos, e a parede de ladrilhos brancos e pretos como num tabuleiro diagonal contrastando com a pintura verde-ânsia descascando dos fundos. Na frente, um monte de pós-yuppies afogando suas depressões em shakes de frutas e sanduíches de atum. No fundo, apenas um velho sentado numa banqueta. Sua posição era estratégica para assistir um tape de uma luta de boxe que passava na televisão pendurada na parede, mas ele não parecia realmente interessado nela. À sua frente, no balcão de madeira velha, uma garrafa de vinho tinto, um copo meio vazio, um maço de cigarros amassado e um cinzeiro lotado. Sentei ao seu lado. Cumprimentei-o com um grunhido vago. Ele, sem me olhar, resmungou.

Pedi ao garçom uma cerveja para começar. Ele me trouxe, mas antes de sair deu uma olhada meio furiosa ao velho. Devia estar lá há tempos. O velho não pareceu se importar.

- Quem está lutando? - perguntei, nem sei por que. Não gosto de boxe e nem de conversas. Mas aquele velho, não sei, parecia atrair um papo.

- Algum mexicano alucinado contra algum queixo de vidro do Brooklyn.

- Meu nome é Zebedeu.

Ele finalmente me olhou depois dessa. Seu rosto era marcado, rústico, quase deformado pelas rugas e cicatrizes de acne, que nem a barba de uma semana conseguiam esconder. Os olhos estavam embaciados e ébrios, mas ao mesmo tempo mostravam uma lucidez assustadora, mesmo atrás de um par de óculos muito grossos.

- Hank - grunhiu ele. Não apertamos as mãos.

- Gringo?

- Yeah, baby.

Agora eu notara o que ele estava fazendo. Com uma bic ele escrevia algo num guardanapo.

- O que é? - perguntei, apontando o guardanapo com o queixo.

- O Poema.

- Posso ler?

- Não.

- Por quê?

- Ainda não está bêbado o suficiente.

- Ah...

Virei a cerveja, e mandei trazer uma dose de uísque. Não, o mais barato, isso. Sem gelo.

- Agora eu gostei - disse o velho.

Tomei de um gole. Uísque vagabundo, desceu que nem uma gilete. Chamei outro.

- É escritor? - perguntei.

- Sou.

- Famoso?

- Pode crer.

- E o que você escreve?

Ele parou o Poema para pensar a respeito. Largou a caneta e coçou a barba. Depois entornou o resto da bebida e encheu novamente o copo.

- Contos. Romances. Poemas. Ah, e já escrevi o argumento de um filme.

- Hollywood?

- Yeah, baby.

- Sucesso?

- Poderia ter sido melhor.

- Qual o nome?

- A Dança de Jim Beam.

- Nunca vi.

Ele deu de ombros.

- E sobre o que você escreve?

Eu o importunara o suficiente para que ele desistisse do Poema. Retirou os óculos e esfregou os olhos enrugados.

- A vida, cara. A porra da vida. A minha vida.

- Eu também...

- É escritor?

- Não, mas escrevo sobre minha vida. Mas para ninguém ler, além do meu terapeuta.

- Nunca escreva para leitores. Escreva sempre para você mesmo. Leitores são todos uns imbecis que fodem com o pau dos outros. E por que você faz terapia?

- Ordem judicial.

- Putz. Eu preferia a cadeia.

- Tem dia que eu também...

Voltamos às nossas bebidas.

- Já fui poeta - eu disse. - No colégio.

- Dos bons?

- Não. Medíocre.

- Bom...

- Por que?

- Os grandes poetas morrem em penicos fumegantes de merda.

- Você é um poeta...

- Não. Eu apenas batalho O Poema. Me impede de enlouquecer.

Eu já estava começando a sentir os efeitos do álcool. Meu rosto estava amortecido, meus olhos enevoados. Pedi mais uma dose, quase engasgando com minha língua enrolada. Ele acendeu mais um cigarro. Na televisão mudaram o canal para o depoimento de um deputado numa comissão de algum tipo. Ele reclamou, mas foi ignorado.

- Merda de política. É o mesmo que foder cu de gato.

- Bebamos a isso!

Viramos nossos copos. Ele tornou a encher o dele. Eu abanei o garçom, acho que pedindo mais uma.

- Você não está no lugar errado para escrever?

- Como assim?

- Sei lá, parece estranho...

- Aqui tem bebidas?

- É um bar...

- Então é o lugar certo.

Passamos quase duas horas assim. No final estava tão bêbado que qualquer descrição minha seria imprecisa. Não que tivéssemos exatamente tido uma conversa realmente construtiva. Na verdade, mais bebemos do que falamos. O estranho é que ele emborcava uma atrás da outra, e sua garrafa nunca esvaziava. Mas eu posso ter ficado tão alterado que nem percebi o garçom trocando as garrafas. Sei lá. Lá pela meia noite saímos, um apoiando no outro. Paramos na porta. Ele me chamou um táxi. Perguntei se ele queria dividí-lo.

- Não, obrigado. Minha mulher está vindo me buscar. Ou assim espero.

- O Poema...

- Hum?

- Já estou bêbado o suficiente para ler o Poema?

- Meu amigo, você ainda tem muitos copos a beber antes de conseguir lê-lo. Eu que sou alcóolatra há uma vida inteira ainda não consigo completamente...

- Você os escreve...

- É. E eles são bons, pode acreditar. Mas é por isso que eu batalho neles. Você, bom, você ainda não está pronto. Volte pra tua terapia. Volte a escrever em teu computador. Quem sabe um dia?

- Velho filho da puta...

- Com um puta orgulho.

E assim foi. Fiz um monólogo ébrio ao motorista do táxi, que me deixou em casa sem dizer palavra. Subi para meu apartamento e caí na cama. Hoje, dor de cabeça e cabo de guarda-chuva.

E a sensação que eu desperdicei uma oportunidade de ouro. Não sei por quê.

1.8.05

O Encontro

Doutor,

eu subi por um elevador do tamanho de uma cabine telefônica. Espelho de um lado, câmera do outro, e eu no meio sem saber onde não olhar. Respirei aliviado quando a porta abriu e eu saí. No minúsculo saguão havia quatro portas. Toquei a campainha de uma delas. Um cachorro estridente disparou. Alguém grunhiu dentro do apartamento, xingou o cachorro, e destrancou a porta. Duas voltas. Abriu. Me reconheceu na hora. Era a primeira vez que eu o via.

Acho que passamos um minuto parados. O cachorro perdeu a paciência e disparou em direção à minha perna, mas apenas para cheirá-la. Olhei para baixo.

- Caralho, você tem um POODLE?

- É uma longa história - respondeu ele, aproveitando a quebra do anti-clímax. - Você quer entrar?

Dei uma sacada nele antes de entrar. Era alto. Devia ter um e noventa. Os cabelos longos rebeldes lutavam contra um elástico em sua nuca. A barba era de três dias, no mínimo. A barriga de trinta anos. A bermuda parecia uma relíquia oitentista. Estava descalço. Entrei.

O apartamento era pequeno, mas era novo, como o prédio. Pequeno burguês. Paredes cor de creme. Móveis pequenos para caber no espaço desproporcional ao habitante.

- Você mora sozinho? - perguntei, nem sei por que.

- Não. Minha mulher tá no quarto, dormindo...

- Puta que o pariu. Você é CASADO?

- Sou. Senta. E por favor, fala baixo. Minha filha pode acordar...

- Você tem FILHA? Merda, me arruma uma bebida!

Ele foi pisando pesado até a cozinha. Pegou duas latas de cerveja. Eu ia abrir a minha quando uma sombra caiu no meu colo. Quase vomitei as tripas. Era a porra de um gato.

- Um GATO PRETO? Cacete, isso aqui é um zoológico?

- É uma gata. Deixa que eu pego...

- Pode deixar. Só não deixa esse poodle chegar perto.

- OK...

Bebi a cerveja. Estava com um gosto estranho. Ele também achou. Levantou a lata e olhou o fundo. Xingou e levantou-se de um pulo.

- Tá vencida. Desculpe. Não costumo beber em casa...

- Você NÃO BEBE EM CASA?

- Não normalmente. Mas eu tenho uma garrafa de Chivas fechada. Vou pegar uma dose pra gente.

- Faz isso.

Ele foi, andando do jeito estranho dele. Era desengonçado com aquele tamanho todo. Cintura muito larga, ombro muito estreito. Parecia uma pêra gigante. Um pouco corcunda. Nada do que eu imaginava. Perguntou se eu queria gelo, e respondi que sim, uma pedra. "Que nem eu", reconheceu. Voltou em dois minutos com os copos. Dei uma bicada. Coisa boa.

- E aí? - perguntou ele, depois de também dar uma bicada.

- Eu que pergunto. E aí? Que história é essa?

- Não sei. Acho que eu te chamei...

- Não, eu só vim pra cá. Nem lembro como. Só lembro de ter aparecido na tua porta. O que isso significa?

Ele deu mais um gole: - Não sei bem. Pode não significar nada. Pode significar um monte de coisa...

- Puta que o pariu...

- Tá, desculpe. Sei que você não gosta de nada dúbio.

- Cara, eu sou a dualidade em pessoa. O Homem Dialética! E esse lance em si tá parecendo esquizofrênico demais, até mesmo para mim. Como é que nos encontramos, e por que?

- Como eu não sei. Por que? Talvez tenhamos atingido essa maturidade. Você, pelo menos. Talvez seja a hora.

- Para um ateu cético você parece ter um monte de explicação mística.

- Não se aplica a este caso. Pergunta pro teu analista.

- Pode deixar.

Dei mais um gole, e curti a queimação do malte em minha garganta. Cacete, não tomava um uísque decente fazia alguns anos. E aquele filho da puta ali, com uma garrafa inteira parada...

- Meu, eu só quero entender uma coisa - respirei. - Por que?

Ele pensou por alguns minutos. Suspirou, e quando o fez o peito de galinha se estufou um pouco.

- Não sei. Aconteceu um dia. Chamo isso de espasmo. Acontece de vez em quando, e não dá pra controlar. O problema é que na maioria das vezes acontece no trânsito, ou no trampo.

- Que é que você faz da vida?

- Eu faço programas...

- O QUÊ?!?

- ... de computadores. Não acredito que você caiu nessa piada.

Dei um riso. O primeiro da noite.

- O pior está por vir, e não é piada: trabalho numa seguradora.

Aí eu ri de verdade.

- Então é isso? Eu sou apenas uma válvula de escape pras tuas frustrações?

- Sim, no início. Foi por isso que não divulguei pra ninguém no começo. Depois, bom, depois virou um passatempo. Agora, já nem sei mais. E acho que é por isso que você está aqui.

Sacudi o gelo em meu copo. Ele entendeu a deixa e me serviu mais uma dose.

- Acho que não - disse eu, depois de mais um gole. - Acho que é outra coisa.

- Pode ser. Ou pode ser os dois. Você claramente assumiu uma proporção que eu nunca imaginei. Talvez esse seja o motivo de sua vinda. E, bom...

Ele respirou fundo.

- Depois o enrustido sou eu... - alfinetei.

- É, que moral eu tenho?

Virei o uísque e me levantei. Ele me acompanhou.

- Já vai?

- Já. Deu no saco. Cara, vou te confessar uma coisa: odiei te conhecer. Você é o maior babaca que eu já vi, e olha que a lista é grande. Sei lá, você me dá nojo.

Ele baixou os olhos.

- Bundão do caralho. Se tem alguma coisa a fazer ou dizer, por que não vai lá e faz ou diz?

- Olha quem fala...

- Se eu não falo, se eu sou uma granada de rancor e depressão com o pino encravado, é tudo sua culpa. E você, que desculpa tem?

- ...

- Vai se foder!

Saí pela porta cor de creme e entrei no elevador-paranóia. Não olhei para trás.

Doutor, o que isso significa?