6.9.05

Dez Reais

Doutor,

estava eu caminhando sob o clima instável, com as mãos no bolso e os olhares no asfalto velho e quebradiço como meu raciocínio vespertino, negro e sujo como a alma que eu sabia não ter, e pensava no recheio magro de minha carteira. Dez reais. Os últimos da quinzena que acabara de começar. O pouco que reservei para mim de meu surrado ordenado. Decidi usá-los para mim. Dez paus ávidos por preencher alguma boceta capitalista faminta, eu só ainda não sabia qual.

Caminhei pelo centro. Tinha fome, mas não queria gastar o dinheiro com comida. Não, não, comida não. Eu queria alguma coisa nova, uma experiência, uma inspiração, um acontecimento. A isso eu daria de bom grado tudo o que eu tinha: os dez paus. Os onze, até.

Mas a rua era chata. Pessoas chatas, olhares severos mirando o nada especulativo de suas existências medíocres. Ruas sujas e abandonadas por algum político miserável e pela população descrente. Trombei com um executivo apressado. Olhei para ele nervoso. Posso assustar quando faço minha cara de nervoso, pode acreditar. Não foi o caso, pois o babaca nem olhou para mim. Resmungou algo que poderia ser tanto um pedido de desculpas quanto uma blasfêmia cabeluda entupida num ralo moralista, e foi embora junto com a torrente humana de fim de expediente, ávidos para chegar em casa e estender suas vidas patéticas mais um dia.

Eu não. Eu procurava vida no ambiente ermo e estéril da cidade grande. Eu tinha dez paus, dez falos rígidos e pulsantes esperando para serem extenuados. Eu flanava como a porra de uma alma penada depenada de suas asas de anjo, incapaz de deixar esse mundo imundo. E não tinha onde gastar meu último dinheiro.

Começou uma garoa, e a vazão humana aumentou de ritmo. Eu não, fiquei me molhando miseravelmente, misantropicamente, enquanto os ratos se protegiam sob toldos amarelos e passarelas de neon. Ri, cuspindo gotas de chuva que escorriam dentro de minha boca. Minha camisa se encharcou e transformou minhas costas numa cachoeira até meu rêgo, e não era um regato, era uma cavidade anal. Minha calça se encharcou na minha bunda e nos tornozelos, mas ficou seca no meio, e a chuva, acho que num espasmo estético, achou legal e parou de me molhar.

Continuei andando pelas ruas semi iluminadas por postes com sensores apressados, talvez contagiados pela turba que agora diminuia. De canto de olho via uma bunda passando por mim, e acompanhei-a. Dez paus, moça, só isso, tudo isso, só tudo. O que consigo de você com isso? Um joelho? O canto de um seio? Um sussurro safado em meu ouvido? Ela anda com pressa culpada, eu a sigo com pressa ansiosa. Sabe andar de salto alto. São poucas assim hoje em dia. É uma arte perdida. Tec-tec-tec, equilibrando-se habilmente no asfalto irregular. Imagino-a nua, apenas de saltos altos, pois ela não seria ela se os tirasse. Seria mais uma. Não valeria meus dez paus. Sigo-a pelas ruas. O décimo primeiro acorda, eu ajeito seu pescoço despudoradamente. Ela está a três metros, mas anda como se estivesse numa marcha atlética, os braços junto ao corpo agarrados a uma bolsa de vinil barata, a bunda alternando a altura das bochechas como se fossem pistãos de um motor bem lubrificado. Dez paus duros valem uma volta naquela máquina?

Aí ela entra numa igreja, e os dez paus broxam. Pensei em segui-la para dentro, mas seria por teimosia. O tesão morreu. Ela não vale meus últimos trocados. Não vale nem um minuto. Não vale uma desculpa para entrar na merda de uma igreja.

Do lado do templo velho e sujo de fuligem, outro resplandecia a neon. Era um estúdio de tatuagem. Na porta uma moça magra, com cabelos negros chanel, fumava um cigarro com cara de saco cheio. Top preto, barriga de fora, umbigo perfurado por uma jóia grande. Me vi imaginando em que outros lugares haveriam jóias naquele corpo. Ela me viu. Deus, devo estar parecendo um mendigo! Olhos bonitos escondidos por miligramas excessivos de maquiagem feia. Não sei porque entro. Em meio a gravuras, caveiras e pastas de plástico tem um careca. Sua nuca parece um gibi pulp. Tem mais metal naquela cara que o necessário. Imaginei ele entrando num banco ou aeroporto o trabalho que não daria. O careca sorriu pra mim um dente de ouro.

- E aí, o que vai ser? - ele perguntou, acho que pra me zoar.

- Um Ele-Fante. Na minha bunda. Vai se chamar John.

- Um elefante?

- Elefante não. Ele-Fante, John. Te dou dez paus por ele.

- Vai custar mais que isso.

- Tá. E se eu trocasse por um velho diabético cego e sem as pernas numa cadeira de rodas?

- Mais caro ainda.

Saí de lá para a rua. A morena chanel tinha desaparecido. Azar dela. Perdeu meus dez paus. Nem vai saber, a piranha. Deve dar pro careca, a vaca. E ele só tinha um, com certeza supervalorizado pelo mercado especulativo.

Continuei vagando sem rumo até cansar. Não consegui ordenar a mente o suficiente para saber onde gastar a porra dos dez reais, então os entreguei a um mendigo, que quase me beijou ao ver a nota. Mandei-o tomar no cu e fui pra casa. Uma punheta me esperava. Depois de um copo de leite, não sei bem por quê.