27.9.05

Chutando Ubaldo

Doutor,

hoje foi dia de rodízio, e como não suporto ficar no escritório até tarde sem motivo algum (e nem um pouco a fim de trabalhar mais sem ganhar hora extra), fui até o carro. Normalmente passo as três horas seguintes ouvindo música ou lendo um livro. Mas, além do frio, eu tinha esquecido minhas fitas (é, sou pobre!) e material para leitura. Na rádio só passava a mesma merda de sempre. Então liguei o carro e fui até o shopping mais próximo, pois lá tem uma daquelas livrarias imensas em que deixam a gente ler os livros sem pagar nada. Biblioteca chique.

Parei o carro na rua pois não tinha os quatro reais do estacionamento, e fugi do flanelinha, entrando na livraria pela porta dos fundos. Era um café, e pessoas bonitas e bem vestidas afastavam o frio com capuccinos cheios de chantilly. Me senti invisível por um momento. Era uma verruga peluda e cancerosa em uma pele aveludada, que ninguém fazia questão alguma de olhar. Um garçom apressado com a bandeja forrada de croissants passou zunindo por mim. Continuei andando, esfregando o frio das mãos. Passei pela seção de informática sem realmente ver nada, e fui até a seção de revistas. Duas horas e meia de leitura, não dava pra atacar um livro. Passei por revistas masculinas e de moda sem realmente me interessar, até achar uma coisa que imaginava que não existisse mais: uma MAD. Carreguei a revista até o sofá duro e desconfortável ao lado do caixa (o único desocupado) e comecei a ler. Imediatamente percebi que, se a MAD não tinha acabado nos anos oitenta, deveria. O formato era o mesmo e preguiçoso de sempre, com o humor rasteiro e sem graça americanóide. Uma merda que não servia nem pra limpar minha bunda. Me irritou, e abandonei-a na mesinha. Fiquei sentado por dois minutos ainda, temeroso em perder meu lugar, quando percebi as prateleira de pocket books ao meu lado. Estiquei o braço e, num golpe de sorte resgatei um Bukowski ainda inédito para mim. Pronto, havia conseguido a leitura ideal.

Neste meio tempo uma gordinha sentou ao meu lado. Carregava meia dúzia de revistas e uma sacola. Colocou as primeiras no colo e a última entre nós. Uma barreira consumista contra a escrotidão e a sujeira representada por mim. Gostei dela. Uma atitude ousada, sentar do meu lado, tendo como única defesa uma sacola de cartolina cheia de roupas. As revistas eram óbvias. Marie Claire, Nova, essas merdas. Passei a ignorá-la, pois a minha leitura estava ótima. Adoro o velho Buk. Ele sabe tirar um sorriso de meu rosto com suas merdas diárias e biográficas.

De repente passa por minha visão periférica algo interessante. Uma garota, recém mulher, com uma roupa apertada demais no corpo um pouco acima daquele manequim. Cabelos castalhos com luzes, nariz meio adunco, mas nada que estragasse o rosto. Bunda grande, cintura fina, peito médio. Bonita, sim, confesso. Ela circula à minha frente, examinando as prateleiras a esmo. Percebo que ela está um pouco nervosa, pois examina livros de culinária e de auto ajuda com o mesmo interesse forçado. Em segundos ela desaparece, e retorno à leitura. "Escritores gostam de cheirar as próprias merdas". Boa, Buk!

Nem sei quanto tempo passei ali, mas li umas trinta páginas. Já não estava mais numa livraria de um shopping metido. Estava nos hipódromos de Los Alamitos, nos bares de Los Angeles. A sacola da gorda caiu sobre meu braço, e ela rapidamente reconstruiu sua muralha com um pedido de desculpas. Lemos. Eu era um velho decrépito tentando escrever antes de morrer. Ela uma gorda morfética tentado descobrir como não morrer.

Aí a morena retorna de seu limbo. Continuava aflita, mas não era medo, era um nervosismo bom. Algo ansioso. De vez em quando ela pulava de um corredor a outro, mas evitava parar na minha frente. Eu lia um parágrafo do livro e outro de sua bunda flanante. Não cruzamos olhares nenhuma vez.

Aí a gorda levanta, me dando uma visão indesejável de sua calçola bege quando sua calça apertada desceu quando ela torceu seu corpo. A morena com cabelos iluminados quase saltou de alegria. Pegou rapidamente um livro da prateleira e sentou-se ao me lado. "A Casa dos Budas Ditosos", João Ubaldo Ribeiro. Aí, um brilho de verniz na capa queimou minha retina e compreendi o que estava acontecendo. Uma única palavra, uma mensagem sutil, um tapa em minha cara.

LUXÚRIA

Seria coincidência? Para confirmar minhas suspeitas virei-me para ela e olhei-a nos olhos. Eles estavam focados em mim, e os lábios brilhantes com algum batom caro se torceram num sorriso adorável. Sorri de volta, e retornei para meu livro. Mas não lia mais. Tremia. Suava. Hiperventilava. Ela continuou com sua postura. O rosto era belo, mas os pés se sacudiam, denunciando sua ansiedade. Pés bem calçados num salto agulha, em contraste com meu sapato surrado.

O que eu faria com aqueles pés? Lamberia, morderia, mastigaria cada falange, estalaria seus ossinhos em meus molares. Faria aquele rosto delicado se contorcer de dor. Arranharia aquelas coxas grossas, lamberia o sangue ralo que escorreria. E ela gritaria, impotente, assustada, submissa. Estapearia aquela bunda grande. Beijaria suas celulites e perfuraria a carne lisa com agulhas de acupuntura. E ela rasgaria a fronha com os dentes, incapaz de saber se gozava ou chorava. E eu a enrabaria sem lubrificação, as pregas rasgando com a passagem de meu pau latejante. Eu a colocaria de quatro e apertaria seus peitos médio e macios até deixar marcas permanentes. Morderia sua omoplata e puxaria seu cabelo bem cuidado até arrancar tufos iluminados, que colocaria em minha boca salivante. E pararia quando ela começasse a gemer, abandonando-a sozinha na cama. Se reclamasse, estapearia seu rosto maquiado e me masturbaria com suas lágrimas magoadas. Esporraria em sua cara, em seu cabelo, e acenderia um cigarro. Se ela fizesse menção de se levantar e ir embora torceria seu braço até as juntas estalarem, e a enrabaria novamente. E isso iria noite adentro, dia afora, e quando me cansasse daquela coisa eu...

Pisquei os olhos, retornando de meu delírio. Ela ainda me observava, e percebi que estava prestes a puxar conversa. Não, lindinha, não, leitora e tradutora de luxúria, não faça isso. Você não tem noção de onde está se metendo. Você é demais para mim, eu não mereço isso. Não sei o que você viu em mim, talvez um charme rude, uma transgressão erótica, uma perversão fugidia, uma promessa inconseqüente, mas não me interessa. Seríamos tanto, faríamos tanto, e você sairia machucada. E não merece. Não, não merece. Pois parece uma pessoa legal, parece alguém destinada a felicidade, e isso você não encontrará comigo. Não, não será uma noite apenas, e você sabe disso. Somos perfeitos demais um para o outro para dar certo. Você linda. Eu deplorável. Perfeito, perfeito demais. Não, não, sim, por que não?, não!, talvez, não, não, não faça isso!

Fechei o livro e levantei. Ela se assustou e derrubou os Budas Ditosos. Dei um passo rápido e chutei o livro. Chutei Ubaldo e fui embora. Antes de sair de perto, virei-me para ela e disse: "De nada". E fui embora. Não olhei para trás. Larguei o livro em uma prateleira qualquer e saí dali. Fui até o carro. Inconscientemente fiquei dando voltas no quarteirão do shopping, queimando combustível, cada fibra minha, cada ribossomo, cada mitocôndria querendo retornar ao sofá, ao Bukowski, ao Ubaldo, aos cabelos morenos iluminados, à bunda grande e aos sapatos finos.

Quando deu oito horas peguei o caminho de casa, e escrevi sobre isso. Sobre aquela morena que eu nunca mais veria. Sobre minha covardia patológica e meu medo de viver. Sobre isso, que você acabou de ler, e que espero que analise.

Analise, e não se alise. É, você entendeu!